3, 2, 1

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calendariomaia
Impressão esquisita essa de que tudo que faço hoje pode ser pela última vez. Como todos agora sabem, os maias foram mal compreendidos por nossos cientistas primários. O mundo acaba hoje, último dia do ano, o que até contribui para facilitar o pagamento das contas e apuração do imposto de renda, caso realmente exista algo parecido com aquilo que se convencionou chamar de “inferno”.
Enquanto preparava o café, decidi não alterar minha rotina. Vou caminhar, aproveitar o sol, o vento e ver gente. Ao mesmo tempo, não quero encontrar nenhum conhecido. As emoções estão muito à flor da pele. Melhor me manter calmo e quieto. Mas saio sabendo que verei coisas que me tocarão bastante. É o último dia de todos os tempos. É o último dia do tempo. Seria ingenuidade acreditar que eu poderia permanecer imune. Bem que tentei.
Moro perto do forte São João, do Exército, com duas praias gostosas e pequenas de acesso restrito. Hoje não! Todo mundo pode entrar, praia liberada! Fugi da tentação e segui pela orla. É, o mundo vai acabar e a baía da Guanabara não foi recuperada. Quanto esgoto!
Passo pelo supermercado, que está vazio, para meu espanto. Acho que o carioca resolveu que comida não é tão importante numa hora dessas. Paro para ver uma cena que gostaria de ter vivido, talvez. Um amigo do bairro faz uma declaração apaixonada para uma outra moradora. Detalhe: ambos são casados com outros parceiros. Pois é, as paixões da juventude têm um sabor diferente e inesquecível.
Na rua, uma moça distribui flores a todos com mensagens de amor. É algo diferente, mas eu prefiro aproveitar meu tempo de outra forma. Continuo a andar, a observar o que se passa de mais interessante.
Estou impressionado com o pequeno número de carros no asfalto. Parece que todo mundo resolveu sair a pé. As pessoas procuram ser gentis, como se procurassem uma redenção coletiva. Têm medo. Arrependo-me por de ter saído sem o celular. Gostaria de falar com minhas filhas. Falo mais tarde. O que estarão fazendo?
Nem tudo é festa e paz. Aqui e ali, há algumas brigas, veem-se algumas gangues, mas ninguém reprime. As explosões de revolta se esvaziam sozinhas, perdem força. De um modo geral, prevalece um sentimento de conformismo — não há mesmo o que fazer, não há resistência possível diante do inevitável. Não olho mais para a paisagem — ela já está gravada em mim — olho para as pessoas. Parece que o hospício abriu as portas. Tem de tudo: pregadores, futuristas, alarmistas, boateiros.
Pergunto-me se seria a hora de me arrepender de algumas coisas. Mas meus únicos arrependimentos são relativos a coisas que deixei de fazer. Aquilo que fiz foi decidido com consciência e tranquilidade. Era o que o momento pedia; logo não me arrependo.
O relógio anda para trás em contagem regressiva, muitos olham para o céu como se estivessem à procura de alguma coisa. Não me incomodo. Mas acho tolo precipitar algo que já tem hora marcada.
E os amores perdidos, acabados, esquecidos? O que serão deles? Também serão reduzidos a pó? Não me refiro apenas aos meus, mas aos de todo mundo. Sinto aflição. Sinto vontade de beijar. Penso em duas ou três candidatas. Não sei quem escolheria. Quanta pretensão a minha! Quem disse que elas gostariam de me beijar…
Como sempre, brinco com os cachorros, mas hoje eles estão diferentes. Apesar de parecerem agitados, todos mantêm as orelhas baixas e o olhar um pouco mais triste.
Penso de novo nas minhas filhas. Quero dizer algumas coisas, mas sem ser melodramático nem passar tristeza e apreensão. No fim das contas — desculpem o trocadilho infame — tudo se acaba ao mesmo tempo. Que epílogo mais socialista!
Percebo que saí de casa sem dinheiro, mas reparo que hoje isso não faz a mínima diferença. Ninguém vende nada mesmo:
— Me dá um coco?
— O “dotô”, vejo sempre o senhor andando. Vou lhe dar um bem gelado, assim vai lembrar de mim como gente boa…
— Obrigado. Vai para junto da sua família.
— Minha família são os caminhantes e corredores do dia-a-dia.
— Então vamos juntos pro final.
Que frase mais infeliz! Mas é a pura verdade…
Nem sei onde estou, acho que andei demais. Sinto-me cansado, vou voltar de ônibus. Quero falar com minhas filhas, talvez com outras duas ou três pessoas…acho que gostaria de falar com mais gente.
Vou tentar pelo menos.
Preciso decidir o que fazer até o momento final. Comer bem, ler um pouco, sentir o prazer de dormir sem culpa à tarde. Um bom banho, uma roupa confortável. Onde assistirei ao final. Pela televisão, será transmitido com narração do Galvão Bueno ou Faustão. Se me der na telha, vou para a rua. Ainda não sei bem. Mas uma coisa já está planejada: o último dry martini. Um brinde ao apocalipse.
ultimodia
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