A sombra de um homem

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Profissional III

Uma corrida leve de cinco quilômetros para encerrar o dia vendo o por do sol em Ipanema. Era sempre assim, não alterava sua rotina por nada. Acordava antes das seis e meia para nadar no mar aberto. Dizia que o sal da água do mar era seu elixir da juventude.

Chegava perto das oito no trabalho, ou melhor, no emprego. Não produzia muito desde os quarenta anos, e também não era muito exigido. Agora, depois dos cinquenta, fazia uma contagem regressiva para a aposentadoria,  calculada para os 55 anos, conforme sua previdência privada. Passava o dia ensinando e ajudando estagiários e trainees, como que querendo repetir o que fizeram com ele. Em seu primeiro emprego, recebeu no início uma grande ajuda de um amigo que conhecera por lá. Prometeu a si mesmo que também ajudaria aqueles que começavam.

A promessa feita na juventude acabou se perdendo entre expectativas de salários mais altos e alguns negócios na zona cinzenta do mercado financeiro. Suas opiniões hoje eram ouvidas com um misto de desconfiança e desdém pelos seus colegas de geração, apesar de diversos acertos ao longo dos anos. Ria por dentro dos jovens que acreditavam que modelos matemáticos eram capazes de antecipar os movimentos das cotações e ainda se contorcia de raiva quando o governo cometia atrocidades na economia que um principiante não faria. Era a certeza de que estava vivo e até certo ponto ativo. O mercado financeiro não perdoa perdedores, e desdenha dos que erram. É um suceder de reis e príncipes que não se mantêm por muito tempo no topo. Ele já tinha visto o mundo do topo, e agora observava aqueles que lá se sucediam.

Sua vida pessoal era de todo impessoal. Nenhuma relação que ultrapassasse limites bem definidos e impostos, desde um amor arrebatador e fulminante por alguém bem mais jovem. Suas forças acabaram, acreditava. Não tinha a menor vontade dispender o esforço necessário para a conquista, o entendimento, a aceitação e o convívio. O casamento fracassado, olhado pelo retrovisor, parecia um erro crucial na sua vida.

Tinha a mais absoluta certeza de algumas dúvidas e todas as dúvidas das certezas dos outros. Parecia arrogante e até totalmente indiferente aos demais. Na maioria das vezes, era mesmo. De uma pessoa alegre e participativa, tinha se tornado retraído, triste e solitário.

Voltava da corrida para um banho rápido, uma comida leve, e sempre um livro para ler. As músicas no Ipod eram as mesmas, mas como eram muitas, a repetição se dava a cada quatro dias. E estava ótimo daquele jeito.

Dormia cedo, rezava para não sonhar. Queria o mínimo de vida fora do que tinha e a possibilidade de sonho era sempre perturbadora. Não havia controle e isso era inadmissível.

A alimentação tornara-se quase imperceptível e consistia apenas de saladas, sopas, shakes, e proteínas de vez em quando. Problemas de saúde, ele reclamava. Ou será que ele mesmo teria provocado tudo aquilo?  Tanto fazia. Estava impedido de comer açúcar, e tentava fingir que não existiam mais os refrigerantes, sorvetes e chocolate, coisas que tinha imenso prazer em consumir. As bebidas alcoólicas eram veneno e ele as evitava, mas de forma alguma se esquecia do sabor de um dry martini ou de um bom uísque puro.

O que jamais mudou e prezava demais era o relacionamento com as filhas, aberto, sincero, amoroso e especial. Tinha um orgulho indisfarçável delas. Cada uma a seu modo e jeito desenhava sua própria história com determinação semelhante a dele e a da mãe.

A boa forma física conquistada por ordens médicas contrastava com o limiar de uma nova depressão. Antidepressivos, ansiolíticos e soníferos moravam em um lugar especial da sua mesinha de cabeceira. Antes de tomá-los, ele os olhava com um misto de admiração e ódio e sucumbia, pois sem eles não aguentaria nem se olhar no espelho pela manhã.

Procurava pensar pouco, se ocupar de pequenas tarefas que não exigiam concentração e espera. Não sabia e não queria imaginar o momento seguinte, mas tinha certeza de que a vida que levava era um beco sem saída. Só não sabia onde estava o muro.

Apesar das recomendações para ter um ou dois dias de descanso das atividades físicas por semana, aos sábados e domingos fazia caminhadas longuíssimas de modo a exaurir-se e cair prostrado diante da TV. Deixava para ir ao cinema durante a semana, porque havia menos risco de encontrar alguém. Afinal, todo mundo sabe que a cidade é um ovo. Percebeu que existiam outras pessoas que se sentiam bem quando estavam sozinhas, ou que fingiam muito bem, talvez como ele. Isso aliviava o sentimento de ser um excluído, apesar de saber que a exclusão ocorrera por vontade própria.

O que o atormentava noite e dia, todos os dias do ano, não importava o que acontecesse no mundo, era a certeza de que não tinha controle sobre o seu final. A cada momento se lembrava de algo a fazer para que passasse cada dia mais despercebido de tudo e todos, para viver como se não fizesse sombra e não movimentasse o ar. Essa era sua tarefa de moto contínuo. Ao mesmo tempo, não parava de fazer uma pergunta a si mesmo:

— Até quando? Até quando?

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