Play it again, Frank

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A memória pode ser ativada por qualquer um dos sentidos. Todo mundo conhece cheiros, gostos, sons, imagens e texturas que remetem a lembranças. É preferível que sejam boas, mas nem sempre é o que acontece. Ou pode ser que tenham começado de forma feliz e adquirido contornos de melancolia com o passar do tempo.

Não sou diferente, apesar de as minhas filhas às vezes exclamarem coisas como “Pai, você não existe!” (acredito que falam com carinho e não por acharem que realmente sou louco). Também tenho dessas memórias importantes e específicas, daquelas que se diz que deixaram marcas.

Durante a comemoração do aniversário de um amigo, meu xará, em uma conhecida boate do Rio de Janeiro, no início de 1984, eu estava paquerando uma moça muito bonita que dava sinais de corresponder. Depois de algumas músicas dançando separado, chegou a hora do descanso com músicas mais lentas. O DJ então escolheu New York, New York, com meu herói Frank Sinatra. Tirei-a para dançar, rolou um clima e veio o primeiro beijo.

Não foi tão simples. Aquele beijo mexeu comigo. Até hoje, depois de quase 30 anos, é difícil descrever. Mesmo sem levar em conta meu interesse por ela, aconteceu alguma coisa. Nenhum dos dois ficou indiferente. Passados aqueles segundos, algum constrangimento, sorrisos de canto de boca, mãos mais livres para dançar mais colado, seguidos por mais alguns segundos de silêncio. E a pergunta tímida sussurrada: “Quer namorar comigo?”. Primeiro senti a cabeça fazendo um sinal afirmativo e roçando o cabelo no meu pescoço, seguido por um “sim” baixinho. A música continuou e, na minha lembrança, quase que flutuando passeio pela pequena pista de dança, completamente alheio às pessoas em volta e ao ambiente cheio de fumaça de cigarro, permitido em ambientes fechados na época.

Na hora de deixá-la em casa, veio a minha promessa: um dia dançaríamos essa música em Nova York, possivelmente no Hotel Carlyle onde eu sonhava em tomar um dry martini escutando jazz. Ela sorriu com um ar totalmente incrédulo e disse que toparia, mas riu depois. Despertou meus brios!

Gotham

Vários foram os casamentos e os eventos em que dançamos a música e, já com intimidade, vinha a brincadeira sobre a nossa futura viagem. Depois de quase oito anos juntos, fomos pela primeira vez para Nova York. É bom lembrar que naquela época pagava-se a passagem à vista e o dólar andava nas alturas.

Nenhum dos dois falou no assunto, nem durante os preparativos, nem depois da chegada. Havia tensão e tesão no ar a cada vez que eu escutava a pergunta: “E hoje à noite, para onde vamos?” E eu sempre guardando mistério e surpresa sobre o tão esperado dia. Em uma quinta-feira de inverno, fomos elegantes dançar no Carlyle e escutar jazz.

Nossas mãos estavam geladas. Naquela noite, eu tropeçava no inglês, apesar da fluência na língua. Mas por que isso tudo? Para mim, era o momento de cumprir uma promessa de namorado, importante como uma nova prova de amor. Para ela, a segurança de ver promessas cumpridas.

Dançamos lentamente, sem rodopios, sem percorrer o salão, mas de novo sem perceber quem estaria por lá, e totalmente envolvidos em pensamentos comuns de outras promessas da vida que poderiam se tornar realidade. Fazia frio no salão e mesmo assim, senti uma lágrima quente rolar por meu pescoço e molhar o colarinho da camisa. Nem sei como terminou a viagem. Lembro apenas do sorriso que nenhum dos dois tirou do rosto no resto daquela noite.

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