A virada

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Apesar de trabalhar há mais de 20 anos no mercado financeiro, eu nunca havia participado antes de uma reunião de compra de empresa. E algo me dizia que essa seria uma negociação diferente.
O novo acionista majoritário era americano e faria a reunião por conference call. Meu chefe era monoglota e eu estava ali de consegliere. Representávamos 30% da empresa; o acionista americano havia adquirido 55% e iríamos resolver o futuro da administração e ao mesmo tempo saber o que pensava o novo dono.
A reunião se desenrolaria numa boa sala, com ar condicionado gélido, uma grande mesa oval preta, lugar para todos sentarem, equipamentos de última geração para o tipo de conversa, e o de sempre nos aparadores junto a parede ao fundo da sala: café, água, sucos variados, biscoitos, e acessórios para comer e beber. Participavam oito pessoas e percebi que o único que não falava inglês era meu chefe. Assim, além de servir de tradutor, eu deveria interpretar o que ele pensava para deixar a conversa fluir. Pensei que aquela não era uma situação desejável e previ que o pior poderia acontecer. Havia pedido instruções antecipadas e sabia o que ele queria, mas negociar em seu lugar não seria fácil.
Após as apresentações de praxe, começaram as negociações sobre a diretoria. Quem ficaria, quem seria substituído e quem substituiria.
— Mauro, eu só quero um diretor financeiro que seja honesto e de bom trânsito conosco.
— Honesto não é condição, é obrigação.
— Mas esse que está aí é um ladrão.
— Calma, não podemos negociar assim.
Apresentei a proposta indicando o nome do então gerente financeiro, sendo fuzilado com olhos por aquele que perderia o cargo. O acionista americano concordou comigo, com a condição de indicar o novo presidente.
— O diretor financeiro será quem nós indicarmos e o presidente será indicado pelo majoritário.
— Vê quem esse americano vai colocar! Cuidado para que não seja um cara qualquer!
– Não será, acredito eu.
Escolhido o novo presidente, percebi que era um brasileiro que trabalhava nos Estados Unidos, o que me deixou tranquilo, pois a comunicação com meu chefe seria facilitada. Ele tinha um excelente CV, o que não era exatamente uma garantia, mas indicava um começo bom.
À essa altura, o clima da reunião estava péssimo, pois a diretoria seria colocada para fora. Estávamos nós, sentados diante dos ex-diretores, pessoas com quem conversávamos normalmente até a véspera, e agora havíamos nos transformados em seus algozes. Eu me sentia mal, apesar de saber que fazia o melhor para a empresa e para os demais acionistas.
Após as despedidas e as congratulations de praxe aos novos diretores, imaginei que o coffee-break ficaria intocado, tal era o mal-estar.
— Mauro, pega um café com adoçante para mim, por favor.
Quis esganar o chefe, mas fiz o favor. Peguei uma água para mim. Os demitidos não se despediram, juntaram seus papéis e foram embora. O recém-promovido diretor financeiro fazia as honras da empresa e começou a nos mostrar os números de produção e vendas.
— Deixa tudo com o Mauro. Ele vai ser o próximo Conselheiro Fiscal.
Aquilo me pegou de surpresa: não estava previsto. Levei um susto e fiquei ao mesmo tempo feliz e com algum receio. Afinal a administração que estava saindo tinha deixado a empresa na tanga. O que me passava pela cabeça é que eu teria a chance de fazer um trabalho novo e bom.
Apesar de todos os anos de estrada, percebi que ainda tinha muito que aprender para interpretar devidamente os pensamentos daquele meu chefe.

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Sem comentários

  • chris disse:

    Pra variar meu texto acima ficou confuso… ñ tenho sua capacidade de expressão.

    Quis dizer: de repente tudo pode mudar,virar e para melhor…como foi o seu caso. Maravilha! Entendi perfeitamente…

    a parte: “li por aí…será?” ñ me refiro ao seu trabalho …coloquei o texto no post errado….era no anterior, “Mundo ruim”…

    perdão pelas confusões 🙁

  • chris disse:

    Pois é…
    de repente não mais que de repente. Parabéns, bela trajetória profissional.
    Li por aí…será?

    Lembranças Mal Lembradas

    A maioria dos nossos tormentos não vem de fora, está alojada na nossa mente, cravada na nossa memória. Nossa sanidade (ou insanidade) se deve basicamente à maneira como nossas lembranças são assimiladas. “As pessoas procuram tratamento psicanalítico porque o modo como estão lembrando não as libera para esquecer”. Frase do psicanalista Adam Phillips.

    Adam Philips é, e me parece que ele tem razão. Nossas lembranças do passado precisam de eixo, correção de rota, dimensão exata, avaliação fria – pena que nada disso seja fácil. Costumamos lembrar com fúria, saudade, vergonha, lembramos com gosto pelo épico e pelo exagero. Sorte de quem lembra direito.

    Martha Medeiros

    • maurogiorgi01 disse:

      Nunca me queixei da minha carreira, pelo contrário fui feliz e vivi momentos normais como todos. Bons e ruins. Essas lembranças são boas e fazem bem e como sempre foi meu propósito, falar de tudo, aí está.
      Obrigado sempre.

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