Filho da mãe

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Velha!!

— Oi meu filho, que bom que ligou. Velha é a mãe!!

Era assim que começava cada telefonema, logo que me mudei para São Paulo em 1984. Eu ligava todos os dias, a não ser quando chovia muito. Aí deixava para o dia seguinte, porque ainda não tinha telefone próprio.

Quando deixei a casa dos meus pais, percebi mais do que nunca a importância de minha mãe no nosso pequeno núcleo. As novidades da família, do bairro e do meu pai eram sempre transmitidas nessas ligações, que nunca duravam menos de quinze minutos. Consumiam muitas fichas. Devo confessar que algumas foram feitas a cobrar. Sabe como é o início de vida de casado.

Há exatos quinze anos, no dia 26 de março, minha mãe faleceu. Dona de um temperamento forte, de uma teimosia que reconheço em mim e de um amor sem limites pela família, creio que ela foi uma mulher avançada para seu tempo. Com enorme capacidade intelectual, pertenceu a uma geração que foi ao colégio aos doze anos, já falando, lendo e escrevendo em inglês, francês, além do português. Mais tarde, também incorporou o italiano. Sua cultura chegava a assustar muita gente. Não foi à toa que ela foi designada para dar aulas a museólogas no Museu Histórico Nacional depois que meu irmão e eu saímos de casa. A arte era sua paixão.

Era inteiramente e assumidamente passional. Amava e odiava com a mesma intensidade e não perdia uma discussão, mesmo quando não valia muito a pena. Falando assim, parece se tratar de uma pessoa brava. Ao contrário, muitas vezes se calava para não magoar. Tudo era muito intenso, criando um clima de equilíbrio com o observador e cauteloso marido. Usava todas as suas forças para manter a família unida.Quem a conhecia logo observava sua rapidez de raciocínio, a vivacidade do olhar, e a vontade de querer saber tudo o que acontecia. Também saltava à vista o apego a meu pai e a convicção absoluta de que seus filhos eram bons.

Já comentei em outras ocasiões minha condição de caçula. Em uma família italiana, isso costuma ter algumas características recorrentes: a mamma manifesta certo xodó pelo menor; o pappa por sua vez cobra mais. É preciso ficar atento para não cair nessas armadilhas

Lembro-me bem da preocupação de minha mãe quando meu irmão saia para escalar picos e morros do Rio de Janeiro ou quando eu ia ao Maracanã sozinho com pouco mais de catorze anos. Ao mesmo tempo, mantinha a expectativa de que tudo ia correr bem e um orgulho de ter educado dois meninos que “se viravam”. Nunca nos poupou de broncas por coisas mal feitas ou atitudes que desaprovava, consideradas erradas mesmo que só para a época, mas isso era dentro de casa. Lá fora, ela nos defendia na medida do possível, mas sempre com firmeza. Afinal nenhum dos dois irmãos chegou a fazer tanta bobagem assim.

Não me esqueço dos apelos que fazia em relação às minhas namoradas, paqueras ou amizades “coloridas”. Pedia para não trazê-las para casa. Não queria se apegar e depois descobrir que já havia outra em seu lugar. Ficava vermelha ao telefone quando eu, quase de joelhos, implorava para que ela desse a alguma menina uma “informação equivocada” de que eu não estava em casa.

Em uma das minhas vindas ao Rio, ela disse com algum pesar: “Sem você a casa fica sem quem a movimente; seu pai e seu irmão pouco falam”. É certo que fiquei envaidecido, mas ao mesmo tempo senti uma enorme saudade de tê-la ao meu lado.

Entre namoro e casamento, ela passou cinquenta anos ao lado de meu pai. Com seu falecimento tão súbito, ele desmoronou. Eu fiquei atordoado e cometi o primeiro de muitos erros que me levaram a uma depressão profunda. Não me dei o direito de vivenciar o luto pela morte de minha mãe. Ao voltar do Rio, logo depois do sepultamento, recomecei a trabalhar na esperança de esquecer mais depressa o que havia ocorrido. Foi inútil. Quando a noite chegava e eu me lembrava de que não falaria mais com ela, vinha tristeza de uma forma lenta e constante e me tomava por inteiro.

Sempre pude contar com ela. E em meus piores momentos, quando ela não estava mais a meu lado para presenciá-los, descobri uma coisa que me acalmava profundamente. Mamma ainda mora dentro de mim e me ajuda a conseguir superá-los.

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