Pequenos gestos, sorriso largo

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Cynthia III

Exatamente como na música dos Mamonas Assassinas, ela dirigia uma Brasília amarela, clarinha. Nova no bairro, por coincidência era vizinha da minha avó. Assim, eu costumava passar em frente a seu prédio todos os dias. Não sabia em que andar ela morava, mas sempre diminuía o passo. Chegava mesmo a parar diante do edifício para tentar descobrir alguma coisa.

Um dia, vínhamos os dois distraídos. Eu lia uma revista. Não sei o que ela fazia ao volante. Mas ao virar para entrar na garagem, ela quase me atropelou. Levamos um susto. Eu sorri. Ela pediu desculpas. Já estava decidido, eu queria e iria namorá-la.

A paquera durou mais um ou dois meses. Pode parecer tempo demais, mas existiam fatores complicadores. Havia um namorado na cena, mas os dois viviam discutindo. Às vezes eu acompanhava tudo da casa da minha avó. Ele tinha um Chevette bege. Como eram feios! O carro e ele.

Sorriso largo, daqueles que fazem os olhos fechar quando surge, olhos castanhos e luminosos, não muito grandes. Era pequena, mas proporcional. Nada em exagero, nada em falta. Apesar da altura tinha braços longelíneos e mãos magras e bonitas. Voz rouca, e um cabelo cor de mel, liso escorrido, e fininho. Eu me sentia cada vez mais atraído.

Passei no vestibular no início do ano, mas as aulas só começariam no segundo semestre. Logo, durante seis meses fiz todos os serviços de boy da casa. Banco, lavanderia, açougue, correio, padaria, além de concluir o curso da Cultura Inglesa. Ainda dava tempo de ir à a praia todos os dias. Fiquei queimado até entre os dedos do pé, ponto máximo na escala de vagabundagem de acordo com meu pai. A corrida e o futebol me deixavam em forma.

Eu havia decorado os horários em que ela costumava voltar da faculdade e esperava sentado no paredão da Urca até que passasse aquela Brasília com a baixinha dentro. Uma troca de acenos com a mão, até que um dia ela tomou a iniciativa. Parou o carro e veio conversar.

— Você não faz nada?

A voz era de matar!

— Passei para engenharia, segundo semestre. Enquanto isso aproveito o tempo.

— Faço engenharia, entrei esse ano. Amanhã chego logo depois do almoço. Vamos à praia.

— Te espero lá. E o namorado?

— Ele não vai saber. Ou vai?

— Tem vezes que sou mudo.

Na praia, ela estava simplesmente deslumbrante em um biquíni azul, desses que não é claro, nem é escuro, e tem nomes esquisitos.

Conversamos. Falei bobagens e ela ria. Cada gesto me conquistava mais e mais. Os movimentos eram lentos, estudados e sempre pequenos. Como disse antes, tudo era proporcional.

Marcamos de correr juntos no dia seguinte.

De noite, ligou para minha casa.

— Terminei com meu namorado.

Desligou.

Corremos. Passos pequenos, roupa discreta — não gostava de se mostrar; só abria exceção na praia, onde eu percebi que era seu território.

O namoro começou e atrás de toda aquela proporcionalidade, movimentos estudados, e gestos comedidos, estava alguém decidido que dizia com voz rouca o que queria e como se sentia.

Foi um relacionamento longo, tumultuado, muitas vezes insano. Dele resultou uma amizade que não mantive com nenhuma outra namorada.

Mas a perfeição da proporção foi a minha perdição.

 Cynthia IV

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