1990: Entre o passado e o futuro

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1990 IV

O auditório da cinemateca de um clube de São Paulo estava lotado, com as passagens laterais atulhadas por cadeiras extras. Éramos mais de cem espectadores aglomerados, a maioria do mercado financeiro, pois na diretoria do clube havia diretores e donos de corretoras e distribuidoras de valores. Mas a programação da noite não era nenhum clássico do cinema. Corria o ano de 1989, época da primeira campanha presidencial por voto direto desde 1964, e estávamos ali para ouvir representantes das equipes econômicas dos principais candidatos. Compareceram nomes conhecidos como César Maia, representando Leonel Brizola; Luciano Coutinho (atual presidente do BNDES), por Ulysses Guimarães; Aloizio Mercadante (atual chefe da Casa Civil), por Lula; Miguel Colasuonno, por Paulo Maluf; José Serra, por Mario Covas, e Zélia Cardoso de Mello, em nome do ainda pouco conhecido Fernando Collor de Mello. Embora a economista tenha sido posteriormente chamada de “desconhecida” pelos jornais, naquela época ela era mais famosa que seu candidato, ainda com poucos apoios em São Paulo. Fazia parte do departamento de Economia da USP e ainda chamava atenção por ser a única mulher.

Estávamos em agosto e a política do feijão com arroz do ministro Mailson da Nóbrega e do presidente José Sarney fazia água. A inflação já ficava entre 35 a 40% ao mês. Constatávamos seu acelerar pelas notas estalando de novas que sacávamos nas bocas dos caixas dos bancos a cada semana. Naquele auditório, tínhamos dúvidas sobre o que cada candidato se propunha a fazer e como fazer para dar um jeito no país que chegava ao absurdo de ter sua dívida pública com prazo de vencimento médio de cinco meses. Começavam algumas conversas sobre o calote da dívida pública como solução. Os mercados andavam tensos pois menos de dois meses antes o investidor Naji Nahas quebrara a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.

Como em todo debate desse tipo, saímos com mais dúvidas do que quando entramos. Havia apenas duas certezas: o candidato Ulysses estava contaminado pela proximidade com Sarney e as propostas de Brizola eram bem mais “incendiárias” para os conservadores do mercado financeiro do que aquelas apresentadas pelo ex-operário Lula.

Até então, meu envolvimento com a campanha pelas eleições tinha sido apenas superficial. Não cheguei a me envolver com o movimento pelas Diretas Já em 1984. No dia da grande manifestação da Candelária, no Rio de Janeiro, eu estava no interior do Rio Grande do Norte, em visita a uma beneficiadora de algodão, desfrutando de um calor suficiente para amolecer o asfalto das ruas na hora do almoço. Vi pela televisão a quantidade de pessoas presentes. Cinco anos depois, eu assistia a um debate pouco antes da minha primeira eleição para presidente. Estava prestes a completar cinco anos de casados. Pensávamos em filhos, mas a situação era complicada e íamos adiando.

Entre a eleição de Collor, em novembro, e sua posse, em março do ano seguinte, o país enfrentou o caos econômico com o total de desinteresse do presidente Sarney pelo exercício da presidência e a proliferação de especulações sobre o que seria feito para debelar a inflação que batia os 80% ao mês. Na véspera da posse foi decretado feriado nos dois dias seguintes, o que fez o país ferver com toda a sorte de boatos. Ninguém acertou o que iria acontecer.

Collor assumiu a presidência numa quinta-feira; o famoso discurso de confisco nas contas correntes e poupanças foi feito em uma sexta-feira. O discurso do presidente, que ouvi na sala da presidência do banco onde trabalhava, me deu um susto, apesar de não ter nenhum dinheiro aplicado naquele momento. Dois meses antes, fiz uma viagem de 25 dias à Europa com minha mulher e estava sem nenhuma poupança. Apesar de todas as imensas mudanças introduzidas em um só dia, o mercado financeiro foi informado de que teria que abrir as portas na segunda-feira. E isto era inegociável.

O centro de São Paulo naquele fim de semana viveu um clima de “dias úteis”. Acho que nunca se pediu tanta pizza e refrigerantes nos escritórios. Os carros se amontoavam pelas ruas de pedestres. Os telefones ligados com advogados e agências pelo Brasil inteiro representaram grandes despesas na época. Eu era responsável pelas análises técnicas de empresas para compra de ações e crédito do banco, logo não era fundamental para a operação de guerra para a abertura dos bancos na segunda-feira. Já tínhamos compreendido que o mercado de ações e de crédito ficaria “fechado” por algumas semanas. Por isso, fui encarregado de destrinchar a nova legislação que acabava com os títulos ao portador e os grandes fundos de investimentos onde havia muitos recursos nunca declarados a Receita Federal. Nas três noites que se seguiram ao anúncio, nenhum membro de nossa equipe conseguiu dormir mais do que oito horas.

Na segunda-feira, o caos era total. Os bancos abriram, mas os clientes nada conseguiram fazer. Aliás eles iam até as agências para tirar dúvidas e saíam ainda mais confusos.

Foi uma aventura que só poderia acontecer em um país fechado comercialmente e economicamente e que só deu certo porque fracassou em poucos meses, mas apontou vários caminhos novos.

De todos aqueles candidatos e seus economistas saíram ideias e debates que serviram ao país nos trinta anos seguintes.

Bendita eleição direta.

 

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