Nenhuma traição é gratuita. Existe sempre um motivo que pode ser simplesmente banal. Em outras ocasiões, é uma questão conjuntural. Há ainda aqueles casos em que vem à tona uma fragilidade estrutural do relacionamento. Não importam as razões por trás do ato. Ser traído é uma experiência extremamente dolorosa. E na minha opinião, parece que algumas datas do calendário conspiram a favor da traição.
Experimentei esse gosto amargo em um carnaval, no início da década de 1980. Vivia um namoro do tipo “novela mexicana”, cheio de drama, choros, idas e vindas cheias de tesão. Ela gostava da festa e eu não era um fã ardoroso das folias de Momo. Por isso combinamos um feriado “dividido”. Resolvemos que iríamos juntos a um dos quatro bailes do clube. No segundo dia, ficaríamos juntos na minha casa, que estava vazia, pois todo mundo havia viajado. No terceiro dia, ela iria para o baile com as amigas e eu sairia com os amigos. No último dia, voltaríamos juntos ao clube. Sei que parece uma combinação um tanto esdrúxula, mas tudo bem. Quem está na chuva… Era uma aposta arriscada, mas eu estava apaixonado e topei.
Tudo correu como planejado no primeiro dia: baile, muita cerveja, beijo e amassos. Porém, fiquei encafifado ao notar quando ela cumprimentou um cara de uma forma um tanto esquisita. No dia seguinte: praia, amassos e o resto do dia na minha casa. Pinto no lixo pareceria uma criatura deprimida, se comparado comigo naquele momento. Mas de vez em quando, vinha uma vontade de perguntar quem era aquele cara que ela havia cumprimentado. Do alto dos meus vinte e poucos anos, eu engolia a curiosidade. Enchia-me de orgulho e deixava aquilo de lado com mais amassos.
Chegou então o dia que eu temia. Pela manhã, na praia, senti-me incomodado com a animação dela junto às amigas. Pior, não consegui encontrar ninguém para sair em plena segunda-feira de carnaval. Foi uma noite longa que passei sozinho diante da televisão, vendo o desfile das escolas de samba em uma época em que as fantasias ainda eram muito bem comportadas. Menos mal que naqueles tempos nem se sonhava que existiria o telefone celular. Nem lembro se consegui dormir. Mentira, lembro sim. Não preguei os olhos a noite inteira.
Sem conseguir tomar café, fui para a praia como sempre fazia. Quando cheguei lá, o famoso sexto sentido entrou em estado de alerta. Captei algo de esquisito no ar. Na areia, alguns me olhavam com ironia; outros não continham as gargalhadas.
Ela chegou com a cara fechada e me chamou para conversar. Contou tudo o que havia acontecido e à medida que falava, meu enjoo aumentava, mesmo tendo sido poupado dos detalhes sórdidos. Fiquei mais um pouco na praia e depois saí.
Como disse no início, existem datas que parecem ter sido concebidas especialmente para encorajar a traição. O tempo passou, já havíamos reatado alguns meses antes e ela me avisou que passaria o réveillon com os pais. Fui convidado para uma festa. Não foi nada estudado, nada premeditado, mas a traição do carnaval anterior não me saía da cabeça… e nessa festa acabei cometendo o mesmo erro. Achei que tinha dado o troco, que agora estávamos quites.
Eu mesmo contei para ela o que havia acontecido, sentindo a mesma mistura de mal-estar e constrangimento que ela demonstrara no último dia do carnaval. Descobri que é uma situação em que ninguém ganha. No nosso caso, houve a constatação de que a relação já estava toda trincada. Era melhor dar um soco e quebrar logo toda a vidraça.
Durante muito tempo fez sucesso uma peça de teatro chamada Trair e coçar é só começar… Devo dizer que naquele período dos meus vinte e poucos anos a coisa foi bem assim. Mas me sentia mal e fazia as coisas de maneira atrapalhada. Aprendi tomando porrada. Hoje entendo que não sei trair e que ser traído provoca uma dor insuperável, insuportável.
As crianças têm uma enorme facilidade em dizer que não querem mais alguma coisa. Crescemos e perdemos esse talento. Confesso que até hoje, 35 anos depois, ainda me intriga saber o motivo daquela traição.
Não consigo entender por que você não conseguiu me dizer que não me queria mais.
Muito bom texto!
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Trair e coçar? É só começar?
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Traição sempre será um tema que incomoda e convida a reflexão. Quem ousar dizer que não se preocupa com isso, deve estar mentindo. Achei essa história interessante e bem escrita. Recomendo, vale a pena ler.