A disciplina me faz acordar cedo. Dia de temperatura agradável, sol tímido de outono. Começo mais um treino de 10k, seguindo a planilha do técnico. As dores se manifestam, a meia-idade tornou-as mais intensas, sei que passam e já me aproximo dos primeiros três quilômetros num tempo um pouco inferior àquele estipulado para o dia.
A intenção é conseguir completar de maneira digna minha décima meia maratona daqui a cinco meses. A planilha é essencial, mas quem corre sabe que existem pequenos desafios diários, imaginários ou reais, que servem para tornar o tempo do treino mais agradável.
Vejo minha “presa” a uns 200 metros. É preciso intensificar o ritmo para a ultrapassagem, obtendo como consequência uma melhora no tempo. Camiseta e boné brancos, bermuda preta, rabo-de-cavalo, um bom ritmo. Sem óculos, não consigo distinguir mais do que isso.
Aumento a passada chegando próximo ao quarto quilômetro, com tempo melhor e me sentindo bem. Preciso alcançá-la antes de dar a meia-volta no quilômetro cinco, mas percebo que ela apertou o ritmo. Quando me aproximo, decido seguir sem retornar. Penso em voltar de ônibus. Sei lá. Não é hora de perder o foco.
Mais perto, percebo que a moça deve ser bem mais nova do que eu e que pouco se dá conta do que acontece ao redor por causa dos fones de ouvido.
Lembro que saí só com o relógio. Não tenho dinheiro. Terei que pegar um táxi e pedir para que motorista espere pelo pagamento. Foco, foco.
Ao final do sexto quilômetro, emparelho e olho displicentemente para ela. Quando penso em fazer um rápido cumprimento com a cabeça, a jovem sorri e diz:
— Bom ritmo, tio!
Quase perco a passada e engasgo com a minha saliva. Acompanho o ritmo dela, mais forte, e sinto o efeito no meu fôlego. Vejo que me aproximo do quilômetro oito, mas sem a confiança de antes.
A vida ensina que devemos aprender a ser ultrapassados. A corrida enfatiza a lição. Mas eu ignorei tudo.
Mantenho o passo e a respiração. Ela torna a acelerar — chamou para o jogo. A essa altura, depois de ser chamado de “tio”, devo decidir se pago para ver ou não.
Eu pago.
Outro sorriso:
— Já estamos a 5:30 minutos por quilômetro.
Imagino como me sentirei morto e dolorido depois de tudo. E ainda ouvirei a bronca do técnico. E tem a volta para casa. Corro o risco de perder a hora da reunião que marquei logo cedo.
O sol fraco torna-se escaldante para mim. A marca dos nove quilômetros parece inatingível.
Num lampejo de humildade, penso em diminuir o ritmo e chegar aos 10 km com um mínimo de compostura. Mas vem o golpe final:
— Mantém!
Ela fala com firmeza. Puxo do fundo do meu ser reservas de energia que sei que não existem.
Vejo como miragem a marca dos dez quilômetros e obedeço àquela ordem. Chego ao fim com meu melhor tempo desde que voltei a treinar. Sinto um misto de satisfação e imensa falta de ar. Ela dá dois passos mais curtos, faz a volta para encarar sei lá quantos quilômetros a mais e me fere mortalmente:
— Valeu, tio!
Pingando de suor, com as mãos apoiadas nos joelhos que começam a reclamar, nocauteado pela soberba, começo a rir da minha própria falta de noção.
Meus pensamentos agradáveis sobre o treino puxado e bom são interrompidos bruscamente quando observo meu estado.
Falo sozinho:
— E agora? Como é que vou conseguir um taxi pra voltar pra casa suado desse jeito?