Duas argolinhas

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Ela VI

Ele foi avisado de que ela se encontrava inconsciente no hospital, após acidente de carro.

Não se viam havia mais de cinco anos. O casamento aconteceu rápido, menos de seis meses após se conhecerem, e a separação foi mais rápida ainda, três meses após a cerimônia. Os bombeiros acharam seu cartão de visitas na carteira e arriscaram a ligação, apesar de estar amassado. Essa foi a explicação dada pelo socorrista no hospital.

Entre assustado e intrigado, ele esperava a hora de vê-la. Por que guardara um cartão de visitas dele na carteira? Será que ainda estava sozinha? Ela não tinha mais ninguém no mundo, nem família, e os amigos eram muito poucos. Lembrou-se que ela só enviara dez convites para o casamento, enquanto ele encheu o salão de festas com seus parentes contrariados e seus amigos desconfiados. Mas todos estavam lá.

O médico informou que apesar do rosto não estar machucado, a pancada na cabeça foi séria e os ferimentos internos eram graves. Ele poderia ficar ao lado dela até que terminassem a avaliação das imagens.

Sentou-se surpreendido com o jeito com que ela mantinha no rosto o mesmo mistério que o atraiu quando a conhecera. A cabeça enfaixada não permitia que ele visse seus cabelos cacheados quase brancos de tão louros que eram. No verão, quando se conheceram, de tanto sol, ficaram ruivos.

Quem era ela? Quando se separaram, estava convencido de que não a conhecia, de que havia cometido um engano. Concordou que aquela rapidez na decisão foi coisa de “gente imatura” como dizia seu pai, mas depois só teve relacionamentos curtos e as dúvidas sobre ela o perseguiam. Agora estava ali tão perto. Sem poder perguntar nada, tinha medo de perdê-la, e de perder uma parte importante de sua vida.

Ela se sobressaía na turma por sua cultura e vivacidade, que se alternava com momentos de angústia que transpareciam em seus olhos. Disfarçava tudo com perguntas desconcertantes. Satisfazia-se quando não obtinha resposta e zombava:

— Vocês não me conhecem…

Isso o atraía muito. Que mistério ela guardava? Enquanto se conheciam, namoravam, traçavam planos, tinham certeza de tudo. De vez em quando, porém, sem saber muito bem por que isso acontecia, ela questionava a intensidade de seu amor, abaixava a cabeça, deixando o cabelo cobrir seu rosto, e dizia:

— Você não me conhece…

Tinha razão. Um belo dia, igual a tantos outros, ela arrumou suas coisas, pediu desculpas, disse que tinha para onde ir, sem responder a nenhuma pergunta dele, sem dar ouvidos a nada do que ele disse e saiu pela mesma porta por onde entraram juntos, ambos com o pé direito, três meses antes. Depois de passar algumas horas sem entender nada, ele a procurou por semanas pela cidade toda e não a encontrou.

E agora os dois ali em silêncio, ele velando seu corpo à espera de uma melhora para que pudessem conversar.

Com cuidado, levantou o lençol para buscar sua mão e viu que ela ainda usava a aliança de casada. Emocionado, apertou sua mão para ver se havia alguma reação. Nada.

Desde a separação não se permitira chorar. Todos avisaram antes, houve conversas sérias com amigos e pais, e ele não tinha escutado ninguém. Mas naquele momento, sozinho, chorou toda a dor da separação, chorou pelas dúvidas, chorou pelo reencontro.

Os aparelhos em torno dela começaram a emitir com bipes mais fortes, enfermeiras e médicos apareceram, pediram que ele se retirasse, as lágrimas turvaram sua visão.

Acordou algumas horas depois quando um médico tocou seu braço. A notícia era a pior possível. Entregaram-lhe seus pertences. Na aliança estava gravado seu nome, a data do casamento e uma nova gravação:

— Sua sempre.

Ele tirou sua corrente de batismo, deslizou nela o esguio círculo dourado. Ele se juntava à sua própria aliança, que ele carregava ali desde a separação. Então murmurou:

— Agora juntos para sempre.

 

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