Dura na queda

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Jovem e burro I

Durante os quatro anos do curso de economia, ela pouco falou com os colegas. Odiava trabalhos em grupo e em muitas ocasiões chegou a ser mal educada. Não era bonita. Vestia-se com tamanha discrição que a conclusão lógica era imaginar que não tinha gosto nem qualquer elegância. Começou a estagiar cedo, ainda no segundo ano e sabia-se que quando a interação era inevitável ela até humilhava alguns colegas.

Não foi por acaso que foi escolhida por unanimidade como oradora da turma na formatura, apesar de não ter se candidatado e sequer estar presente à apuração dos votos. Era apenas uma tentativa deslavada dos formandos para deixá-la numa saia justa. Sem se incomodar com uma possível armadilha ao estilo do filme Carrie, a estranha, ela subiu ao palco e fez um discurso que durou exatamente um minuto e tinha cem palavras, achincalhando o curso, a universidade e seus pseudo colegas. Retirou-se sem receber o diploma diante de uma plateia atônita, repleta de professores revoltados e de apopléticos representantes da direção da faculdade que em vão procuravam encontrar uma resposta.

 

Encontrei-a em um congresso trinta anos depois com o mesmo ar sisudo, soberbo, e sozinha. Demonstrava um gosto melhor para as roupas e exibia uma grande parafernália tecnológica: dois smartphones, um tablet e um laptop, tudo espalhado em um banco à frente da cadeira onde se sentava. Por medo, nem me aproximei, mas fiquei por perto para observar em que sala ela entraria, para poder segui-la.

Ela era a palestrante mais importante daquele painel. Não consegui acompanhar mais do que cinco minutos da apresentação — esses congressos me entediam e eu ainda tinha que trocar mensagens com o escritório. Depois de uma hora, findo o painel, perdi o medo e me dirigi a ela:

— Muito boa sua exposição, parabéns!

— Você é surdo, puxa-saco ou burro?

— Talvez letra C…

— Sempre desconfiei disso, desde os tempos da faculdade.

— Mas se lembrou de mim. Ou então sou tão burro, que me tornei inesquecível.

Arranquei um esboço de sorriso, logo desfeito. A maquiagem era tão leve que mal se distinguia batom. Vi que  os óculos eram de grife, mas que não combinavam com seu rosto. Voltei a reparar nas roupas. Eram sóbrias demais até para um congresso com 80% de frequência masculina. Era acompanhada por um séquito de moças bem jovens que sorviam cada comentário seu como se fossem palavras proferidas por uma semideusa.

Não desisti. Sentei na mesma mesa que ela, na hora do almoço.

— Insistente, você. Aliás na faculdade sempre tentou ser meu amigo. Mas eu nunca daria cola pra você.

Quem sorriu fui eu. Ela permaneceu séria.

Observando o crachá de identificação do evento arrisquei de novo:

— Atuante, sua instituição. E olha que é estrangeira. Fato raro. Costumam ser sempre mais comedidas.

— Primeiro comentário com algum tipo de acerto.

— Uma eu tinha que acertar.

Consegui trocar mais umas duas frases quando as outras e raras mulheres presentes sentaram à mesa, tornando-me uma espécie de “bendito fruto”. Confesso que estava me sentindo mal, mas resolvi pagar para ver.

Ela continuava a mesma da faculdade, só que mais misteriosa. E eu sentia vontade de me aproximar dela, não apenas profissionalmente. Subitamente, ela solta uma frase dirigida para as demais:

— Esse daí tem ousadia. Já tinha na faculdade. Acompanhei algumas atitudes dele no mercado financeiro. É bom.

— Obrigado. Pensei sinceramente que era burro.

— Por tentar uma abordagem pessoal, sem dúvida que é.

— Mas é só isso que me interessa em você.

Antes de ser quase linchado pela claque, vi seus lábios se afastarem e revelarem os dentes pela primeira vez. Junto com o sorriso, ela disparou:

— Nos meus sonhos, você conseguiu tudo que queria. Mas isso foi há muito tempo. Agora volte para sua vidinha de casado.

Aquela revelação me fez pensar em como eu devia ter sido mesmo idiota na época da faculdade. Sempre gostei de mulheres fortes e misteriosas, mas o mistério era tamanho que agi mesmo como um burro.

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