Feia, mas cheia de graça

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SP I 

O mercado financeiro definhava no Rio de Janeiro no início da década de 80, época em que houve um grande êxodo das instituições e a consequente transferência dos profissionais. Assim, pouco tempo depois de concluir o curso de Economia, aos 25 anos, fui parar em São Paulo. A decisão veio acompanhada de mudanças radicais. Uma curta temporada morando sozinho, a passagem por outra cidade, o casamento e finalmente, um novo emprego, trabalhando na implantação de um setor em uma instituição financeira.

O primeiro conselho que escutei veio de alguém que, na época, eu conhecia superficialmente, mas que se tornou um grande amigo. “Não brigue jamais com a cidade”, ele me alertou. Foi o que procurei fazer, com sucesso, durante os 28 anos que vivi na capital paulista.

São Paulo é uma cidade que poderia ser considerada feia à primeira vista. Mantém seus encantos ocultos e não se revela para qualquer um. Porém, para quem se dispõe a explorar seus mistérios, essa tímida pode se transformar em um verdadeiro furacão, enredá-lo de tal forma que não se consegue sair de seu turbilhão. Mesmo relutante, você se apega, mas não pode demonstrar, senão ela lhe escapa entre os dedos. Não se oferece explicitamente, mas está longe de ser pudica.

Para mim, enfrentar tanta complexidade seria um desafio e tanto. Eu vinha de uma juventude passada na Urca, com a janela do quarto com vista para a Baía de Guanabara, caçula de uma família italiana, e às vezes acusado de ser mimado. Desembarquei em um escritório instalado no chamado Centro Velho de São Paulo, na famosa rua Líbero Badaró, entre o Viaduto do Chá e a avenida São João. Percorrer a cidade de ponta a ponta é impossível, e mesmo que se consiga, jamais se verá o horizonte nem se chegará ao mar. Para alguém como eu, acostumado a viver na praia, isso poderia ser um enorme problema, mas não me afetou tanto. Habituei-me, entendi as diferenças e me conformei. Depois, passei a achar tudo normal.

Nunca consegui entender muito bem os versos de Caetano Veloso em Sampa, “…da dura poesia concreta de tuas esquinas, da deselegância discreta de tuas meninas…”. Para falar a verdade, tenho que discordar da suposta “deselegância”. Como em qualquer cidade com clima mais frio, no outono e inverno vê-se um amontoado de roupa com gente dentro, mas que o Caetano me desculpe, a maioria vem de fora, sem estar habituada a esse tipo de clima. E ela é habitada por uma imensa camada de pessoas provenientes de outros estados e do interior paulista, combinando uma série de sotaques que é muito engraçado. Essa mistura de bolo faz o paulistano ser mais retraído, desconfiado. É difícil começar uma amizade.

Porém, uma vez ultrapassada a introversão e a sisudez, o paulistano é capaz de desenvolver amizades imensas e genuínas se você se mostrar uma pessoa respeitosa. Eles frequentam as casas uns dos outros, as famílias são apresentadas e você começa a entender como eles pensam e são.

Como não há um grande ponto de encontro, como a praia no Rio de Janeiro, a sociedade paulistana é mais segregada e quase nunca há invasão de espaços. Isso incomoda no início. Depois, é preciso cuidado para não ficar igual, e achar que é uma coisa boa.

Quando vinha ao Rio de Janeiro, muitas eram as perguntas e observações que eu ouvia sobre a cidade, algumas óbvias: “o trânsito é o caos”, “não sei como aguenta ficar sem praia”, “a poluição é horrível”. Tudo isso é verdade. Mas qual é a metrópole que tem um trânsito perfeito e nenhuma poluição? Além disso, nem todas as cidades do mundo ficam na beira do mar e são bonitas. E acreditem, bilhões de pessoas moram nelas!

São Paulo é uma cidade de imensos detalhes. Ela é mais nova, mais moderna, voltada para o trabalho e a cultura. Por isso, atraiu recursos de todos os cantos do mundo, para todos os tipos de atividade, concentrando gente, gente e mais gente. Existem espaços ótimos como o Parque do Ibirapuera, Parque da Consolação, Bosque do Morumbi, Campus da USP, onde muitos tomam sol, passeiam se divertem e comem. Mas é um outro capítulo.

SP III obrigatório (1)

Quando você passa a frequentar a mesa dos novos amigos, você é da cidade.

Quando você entra nos lugares e se reconhece naqueles que estão ali, você é da cidade.

Quando você é citado como exemplo, você é da cidade.

E essa cidade, acostumada a tanta gente de fora, acaba se tornando acolhedora. Aí quando se caminha exatamente naquelas ruas que Caetano Veloso descreveu, você passa a achá-las bonitas do jeito que são – duras, poluídas, congestionadas — e retribui, satisfeito, o seu abraço.

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