Quem está ali naquela fotografia? Não sou eu. Raro ver um porta-retratos nos dias de hoje, parece coisa de casa de avó ou de recém-casados. Não se guardam mais fotografias em papel, tudo anda armazenado em celulares, pen drives e memórias de máquinas, ainda não sei se é bom ou ruim. O cara está feliz, tem um rosto jovem, sem rugas. É magro e parece estar em forma. A seu lado, encontra-se uma mulher bonita, morena de sorriso com certeza sincero. É engraçado como uma fotografia faz a gente viajar, principalmente quando mostra pessoas, mesmo desconhecidas. É um combustível legal para a cabeça, que fica a imaginar tudo o que se passa com aqueles que estão parados sei lá em que tempo.
Será que aquele sujeito era realmente feliz ou só está fazendo pose? E o casal se dava tão bem quanto aparenta ou fez a foto para deixar para os filhos? Aliás, será que tinham filhos? Será que eram mesmo casados? Muitas perguntas. Ou será que se trata apenas de vontade de bisbilhotar a vida alheia?
Sei lá, mas me deu certa inveja daqueles dois na foto. Não pela possível vida boa que eles levavam, se é que levavam, mas por terem ficado ali, imóveis, para sempre juntos, para sempre alegres e jovens. Imagino as histórias e os enredos de vidas de quem eu não conheço. Provavelmente nunca saberei se ainda estão vivos, mas essa é uma mania minha.
Volto a olhar para a fotografia para reparar nas roupas, na tentativa de precisar um pouco mais a data. Acho que minha cabeça realmente não deve andar muito boa porque me parece que os dois mudaram de posição e de sorrisos, mas continuam juntos, ainda parecendo felizes. As roupas não são muito diferentes das que se usam hoje, calça jeans, camisetas, tênis, um piercing, uma tatuagem. Aquele momento poderia ter acontecido há quinze anos ou mesmo agora. Mas por que mudaram de posição e parecem falar?
Minha cabeça tem uma incrível capacidade de criar histórias. Identifico a iluminação natural sobre a dupla, de foto tirada durante o dia. As roupas leves indicam que pode ser verão. Com toda certeza, o sorriso dela é de luz, sol, água do mar. Como são iluminados seus olhos! E com que intensidade ele parece admira-la, quase extasiado.
Sinto um incômodo que não consigo nomear, nem interromper. Quase uma espécie de imobilidade. Perco os dois de vista, como se tivessem saído da moldura.
Estão de volta. Começo realmente a ficar intrigado com esse porta-retratos que parece vivo. Ao mesmo tempo me assusto e quero ver mais.
Agora olham para mim, como se me reconhecessem. Vejo traços familiares, que poderiam ser meus. Mas não há nada que me permita fixar o olhar e identificá-los.
Voltam a se falar e depois se vão, mais uma vez. Fico paralisado enquanto desaparecem.
Quem está no porta-retratos?
“Minha cabeça tem uma incrível capacidade de criar histórias…”
Percebe-se … 😉