A conspiração contra o silêncio

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O silêncio é tão raro que costuma ser procurado voluntariamente, como demonstra o agente Maxwell Smart.

Existe uma conspiração contra o silêncio e eu e você, leitor, somos cúmplices. Do momento em que despertamos até a hora de dormir, passamos o tempo ativamente criando ruídos para preencher nossa existência. E nem é preciso tanto esforço assim. A maioria da população mundial hoje habita cidades. Mal nos damos conta da trilha sonora que acompanha nossas vidas às vezes discretamente. Enquanto teclo na aparente calma de um apartamento de fundos em Ipanema, numa tarde de domingo, ouço a conversa de vizinhos do prédio em frente, os sinos da igreja soando às 18h, vago rumor de motores, um televisor ligado, zumbidos genéricos. Talvez seja um pouco de exagero dizer que a história da civilização é praticamente a história da multiplicação dos ruídos, desde os cantos e danças do homem primitivo nas cavernas pouco depois de proferir as primeiras palavras do mundo até o estrondo dos aviões supersônicos e as vibrações da música eletrônica.

Existem pequenos gestos diários que fazemos inconscientemente para romper o silêncio, como ligar o rádio ou a TV – às vezes, nem assisti-la, ou mesmo pegar o telefone celular e conferir as redes sociais pela enésima vez no dia. Numa coluna recente, a jornalista Cora Rônai citou uma pesquisa que conclui que um usuário médio manipula seu celular 150 vezes ao dia. 150 vezes. Levando em consideração que a disseminação da telefonia móvel é um fenômeno relativamente recente, eu me pergunto com curiosidade: o que costumávamos fazer com as mãos, digamos, lá pela década de 1990?  A facilidade da comunicação imediata é mais um ruído que, felizes, incorporamos às nossas vidas.

O silêncio absoluto é item tão raro que chega a ser desestabilizador. Basta lembrar que a privação de luz e som faz parte do bê-á-bá dos manuais de tortura. Durante visitas a cavernas subterrâneas, onde é possível experimentar minutos de silêncio e escuridão absolutos, os visitantes são orientados a segurar as mãos de seus companheiros. Tenho uma amiga querida que descreveu a experiência como opressiva e acachapante, afetando até mesmo seu (um tanto precário) senso de equilíbrio. Não é preciso ir tão longe. Uma drástica diminuição nos ruídos já é capaz de desorientar. Lembro-me da primeira noite que passei em um apartamento novo, num bairro tranquilo, cercado pela vegetação e distante dos carros, depois de anos vivendo em uma rua movimentada, de frente, acostumada com a visita regular do caminhão de lixo. A família inteira teve dificuldade para dormir na casa nova. O som dos grilos era ensurdecedor.

A aversão inconsciente é tão grande que o exercício de buscar o silêncio costuma ser exercido voluntariamente, como no caso dos religiosos, daqueles que buscam a meditação ou a produção criativa. E exige esforço. Para encontrar o silêncio que tanto a fascinava, a escritora britânica Sara Maitland fez a opção de se mudar de mala e cuia para as brenhas da Escócia, numa das regiões menos densamente povoadas da Europa. Sua casa não tem sinal de celular e fica a 16 quilômetros do supermercado mais próximo. Por que teríamos tanta resistência assim a suportar o silêncio? Em entrevista para o jornal O Globo, a autora do Livro do Silêncio sugere que depois de eliminada toda a camada protetora de ruídos, talvez haja medos muito primitivos e até mesmo um desconforto com sua própria pessoa. Nos filmes de terror, é no meio da noite, nas casas aparentemente desertas, quando qualquer porta rangendo parece gritar, que os fantasmas aparecem. Nossos humanos fantasmas.

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Sara Maitland em Galloway, Escócia, a muitos passos de lugar nenhum.

Somos frágeis. Somos efêmeros. Passamos pelo mundo com mais perguntas do que respostas, em desabalada carreira rumo ao desconhecido. Do escuro para a luz e de volta às sombras. Do silêncio para os rumores e de volta ao silêncio. Não é para menos que existe a expressão “silêncio sepulcral”.

Por isso, caro leitor, existe uma conspiração contra o silêncio. E eu e você somos cúmplices, aqui e agora. (por Livia de Almeida)

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5 comentários

  • Paulo Roberto de Azevedo Damaceno disse:

    Nada mais ensurdecedor que o silêncio, dizia minha filha quando eu desligava o ventilador do quarto onde ela dormia. Era desligá-lo, cessar o hipnótico som (segundo ela), e tal ato assemelhava-se ao estalar de dedos que liberta o paciente do transe. E imediatamente ela erguia-se com irritação, e, percebi varias vezes, sonâmbula, levantava-se , religava o ventilador e voltava a deitar-se e retornar ao “transe”; nem se lembrava pela manha de ter feito aquilo. Eu ficava impressionado…
    Eu gosto muito do silêncio, às vezes. Mas sei de gente que entra em pânico, e quando percebe-o, sobretudo, se está só.
    Adorei o texto! Obra de craque, Lívia de Almeida!
    Saudações!

    • maurogiorgi01 disse:

      Paulo, agradecemos por suas palavras tão gentis. Nos EUA existem aparelhos para fazer zumbidos e tem gente que não consegue dormir sem eles. Sua filha não era exceção. 🙂 (Livia de ALmeida)

  • Mariane Almeida disse:

    Puxa querido escritor, como é interessante esse texto. Estamos mesmo enredados neste ciclo vicioso de tantos sons que não nos damos conta de como é terapêutico o silêncio. Hoje mesmo publiquei no facebook algo sobre aprender a ouvir o silêncio. Entender o nosso, o de Deus e o dos outros, é condição essencial para encontrarmos o caminho de volta, encontrarmos a nós mesmos. Mais uma vez agradecida por suas mágicas palavras.

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