A fila anda

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Filas I

Eram 13h de um dia quente de verão paulista. Eu e minha filha caçula estávamos a postos na fila do consulado americano para tirar seu visto. Munidos de dezenas de documentos e com aquele formulário em que ela afirmava, sob a minha responsabilidade, nunca ter se envolvido em atos terroristas ou em genocídio em todos os seus dezesseis anos de vida, observávamos a situação de nossos colegas de infortúnio: nervosos pedidos de caneta emprestada, pessoas revendo seus documentos como se fossem apresentá-los ao próprio Obama, e os boatos sobre os vistos negados. A fila atravessou algumas barreiras de detectores de metal, portas e mais portas, e estendia-se literalmente quilométrica. Pensei, com meus botões, que era um ótimo treinamento para quem se preparava para visitar a Disney World nas férias. Depois de passarmos quatro horas alternando a espera em lugares com ou sem sombra e respondendo a pedidos para guardar lugar para quem precisava ir ao banheiro ou comprar água, fomos chamados para responder as famosas perguntas.

— Ela vai com quem?

O funcionário do consulado tenta se comunicar com o auxílio de um microfone por trás de um vidro megablindado e sua voz soa exatamente como a do Pato Donald. Sei não, talvez tudo seja mesmo organizado de propósito pela Disney…

— Vai com o tio. Os documentos dele estão aí.

Respondi prontamente olhando para os marines que contemplam com expressão enfadonha aquele cardume de brasileiros ávidos por gastar dinheiro na sua terra.

— Ok. Quer receber o visto em casa ou buscar aqui?

Depois de quatro horas passadas com sol na mufa na maioria do tempo, não acreditei que tudo se resumiria a uma pergunta e a um mero “ok”. A essa altura, eu queria exigir um inquérito sobre minha participação nas últimas eleições e um interrogatório sobre minha posição a respeito da venda de armas nos Estados Unidos.

Engoli a indignação e respondi.

— Pelo correio, por favor.

— Dirija-se ao guichê do courier e boa tarde.

Imediatamente, lembrei-me de Kate Lyra, atriz americana, mulher do compositor da bossa nova Carlos Lyra, que atuou em algumas pornochanchadas nas décadas de 1970 e 1980. Num programa humorístico de televisão, ela imortalizou o bordão: “Brasileiro é tão bonzinho”.

Não sei se somos mesmo tão bonzinhos, mas o fato é que adoramos uma fila, mesmo reclamando do absurdo que é ter que nos submeter a ela para conseguir passear na terra do tio Sam.

Somos desorganizados, bagunçados, indisciplinados, mas quando se trata de fila, tudo muda: somos loucos para entrar numa. É preciso que alguém faça um estudo sociológico sobre o assunto. E não há quem não tenha mais de uma história não só de filas intermináveis como de conversa nesse tempo de espera.

É possível, por exemplo, conduzir um estudo arqueológico sobre a história das filas. Aquelas na porta do cinema, por exemplo, foram típicas da minha geração. “A gente se encontra na fila. Quem chegar primeiro guarda o lugar.” Assim encerravam-se todos os telefonemas combinando a sessão, num tempo em que não havia nenhum tipo de comunicação móvel. No Cine Rian, no calçadão da avenida Atlântica, só funcionava com tempo bom, e éramos entretidos pelo tabuleiro do baleiro. No Roxy, pelo menos, havia a certeza de que provavelmente terminaríamos sentados em uma poltrona. Havia um balcão! Sim! Quando os filmes eram muito concorridos, ninguém tinha problemas em vender mais ingressos do que assentos. No Cine Veneza, a fila se abrigava numa galeria e via-se muita gente com toca-fitas nas mãos, um verdadeiro trambolho. A região da avenida Pasteur era conhecida pelos arrombamentos dos carros estacionados nas imediações.

Com a compra de ingressos via internet, a fila do cinema virou coisa do passado, mas outras são eternas, como as do INSS, a do último dia para o pagamento do IPVA, ou para se marcar consulta em hospital público. Nessas longas esperas há tempo para muita conversa, reclamações, frases de efeito pronunciadas em tom mais alto. Fala-se mal do governo, qualquer que seja, não importa a esfera: municipal, estadual ou federal. Depois o cansaço vence e começa o momento de trocar experiências de vida. Quando a maioria é de mulheres, é inevitável ouvir histórias de filhos e de partos, de preferência complicados. Quando prevalecem os homens, os temas giram em torno do futebol, das conquistas amorosas em que sempre figura um “corno”, arrancando gargalhadas. Por isso, não acho exagero algum reivindicar o tombamento das filas como um patrimônio imaterial brasileiro, assim como a caipirinha e o acarajé.

 

 

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