A vida a conta-gotas

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Coma IV

Durante 22 dias, ia duas vezes ao hospital ver meu pai em coma induzido. Sentava-me em uma cadeira e tentava ler o prontuário pendurado ao pé do leito. Tinha muita dificuldade para decifrar as caligrafias de tantos médicos e enfermeiros. Depois de algum tempo, criava coragem para falar. Meia hora logo após o almoço; meia hora logo após o jantar.

No início, dizia que tudo poderia melhorar, mas à medida que o tempo passava, comecei a falar de mim, tanto sobre o que me acontecia como também sobre aquilo que eu pretendia. Existem muitas alegações de que as pessoas em coma são capazes de processar as informações que recebem.  Não sei se acreditava nisso ou se ainda acredito, mas era uma forma de desabafo.

Algumas vezes me peguei floreando o futuro, como se não quisesse preocupá-lo. Logo em seguida saía do pequeno quarto e chorava. A quem eu queria enganar?

Eu sabia exatamente que quem estava ali deitado não era mais meu pai. Era um corpo sofrido que esperava o tempo passar. Meu pai tinha ficado na minha memória como aquele que me ajudou sempre que precisei, como o avô totalmente fascinado pelas netas, o torcedor que disfarçava a paixão pelo Fluminense, com grandes doses de bom senso.

Ao mesmo tempo em que procurava alguma coisa positiva naqueles prontuários médicos, eu me questionava o quanto valia a pena aquele sofrimento de fios, tubos e aparelhos piscando e fazendo barulhos.

As conversas com os médicos traziam à pauta novos exames, novos remédios, novas infecções, pouca melhora e certa perplexidade geral. Afinal, o paciente era uma pessoa saudável. Aquele turbilhão de problemas gerava um mundo novo e terrível para mim.

Os dias ficavam cada vez mais difíceis. Uma hora antes de chegar ao hospital eu já começava a me sentir mal. A expectativa pelo que encontraria se batia contra aquela ínfima esperança que resistia, a esperança de que ele estivesse melhor. Ao sair do hospital, eu demorava a entrar de novo na realidade dura que vivia naquela época. A pergunta era sempre a mesma, repetida sem cessar:

— Até quando? Até quando?

Ensaiava o que falaria com os médicos e depois com ele, mas na hora o que vinha era o que estava entalado pela angústia, pelo desejo de uma possível recuperação e pelo pavor de perdê-lo bem diante dos meus olhos, como se junto com ele definhassem todas as minhas esperanças.

Com o passar dos dias, as complicações tornaram-se piores e mais constantes. Quando entrava na UTI, eu era observado pelos médicos, com um misto de preocupação e estarrecimento. Nem eles conseguiam explicar o que se passava.

Enquanto as notícias ruins se multiplicavam e se tornavam mais remotas as possibilidades de uma recuperação completa, crescia em mim, simultaneamente, o medo de ficar sozinho e o desejo de que ele tivesse o descanso merecido.

Ver de perto a morte, ver e ouvir um coração bater cada vez mais lento e fraco me levou a aprender de forma dolorosa que a vontade das pessoas deve ser respeitada. Mesmo que de forma egoísta eu quisesse mantê-lo ao meu lado, deitado, mudo, imóvel, não havia sido essa a forma de amor que ele tinha me ensinado.

O importante era me conformar e aceitar que tudo que compartilhamos era mais do que suficiente para me dar forças para seguir em frente. Mas seguir menos protegido, mais frágil e mais assustado.

 

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