Legado

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meupai1

Sempre fui de temperamento mais para o agitado quando criança, mas pelo que meus pais diziam era extremamente obediente. Mesmo agitado, guardo nitidamente na memória lembranças de tardes de fins de semana em que meu irmão e eu, fazendo silêncio digno de monastério, brincávamos com nossos carrinhos Matchbox aos pés da prancheta do meu pai. Para nós, sua presença, mesmo envolvido com o trabalho já era muito, pois trabalhar por conta própria não era assim tão fácil na época. Aproveitávamos até momentos como esses, que não eram nossos, quando ficávamos fascinados pelo barulho dos esquadros deslizando sobre o papel manteiga e pela velocidade com que realizava seus cálculos numa pequena régua de cálculo.

Nunca vi meu pai como um super-homem, mas me admirava de suas braçadas quando nadava em estilo borboleta na praia. Ao terminar, sempre nos incentivava a ir até ele no fundo, o que parecia um desafio descomunal.

Não era daqueles que fazia o gênero “melhor amigo dos filhos”. Era meu pai e, nesse papel, esteve presente em 100% dos momentos em que precisei. A educação que ele recebeu foi à moda antiga, quando se cercava a figura paterna com um enorme respeito. Ele até que tentou relaxar um pouco com meu irmão e comigo, mas não era seu estilo ser bonachão ou despachado. Nunca foi de dar broncas homéricas – as maiores ficavam por conta de minha mãe – mas seus olhares de reprovação, às vezes de brincadeira, eram capazes de me gelar dos pés à cabeça.

Sua preocupação com a nossa formação intelectual era enorme, e junto com minha mãe, proporcionava leituras e fazia de tudo para que a televisão fosse um aparelho pouco usado. Apesar de muito ocupado – acreditava realmente na importância de se trabalhar muito – sempre achava tempo para as praias de domingo no Forte, para alguns jogos no Maracanã, como já contei aqui, e às vezes para bater uma bolinha comigo na casa dos meus avós.

Minha admiração por ele era profunda, mesmo durante os tradicionais momentos de implicância com o comprimento do meu cabelo, com o número de ligações de meninas para minha casa ou ainda na ocasião em que deixei o colégio São Bento. Os famosos “assuntos de homem” nunca foram abordados por ele. Por me ver sair com algumas namoradas, certa vez me fez uma advertência séria sobre proteção e responsabilidade. Como no meu tempo, o sexo com as namoradas era algo raríssimo, guardei o conselho para as raras idas às boates de Copacabana durante a semana. Para ele, a fidelidade não era uma qualidade, mas uma característica intrínseca a um relacionamento.

É claro que à medida que nos tornamos adultos tendemos a compreender melhor nossos pais, mas fui brindado com uma experiência diferente. Durante uns seis, oito meses trabalhei com ele. Era presidente do Fundo de Pensão em que eu era analista de investimentos. Fui contratado um ano antes dele assumir o posto.

Nesse período, eu estudava a noite, trabalhava de dia e tinha que chegar mais cedo do que todos. Aprendi demais e vi o quanto ele prezava o trabalho honesto e digno. Fui convidado a trabalhar em São Paulo. Aceitei, pois percebi que, fiel a seu modo de agir, eu nunca seria promovido, mesmo que fosse discípulo de Adam Smith.  E ele me apoiou, me deu diversos conselhos, especialmente quando lhe comuniquei que além de mudar de cidade eu também decidira me casar!

Ao longo dos anos que vivi em São Paulo, fui observando sua trajetória como um dos homens que mais entendia de transportes no país, mas sabia de sua preocupação comigo, com as incertezas do mercado financeiro, tudo transmitido por minha mãe. Ele não demonstrava nada.

Quando minha mãe faleceu, percebi sua fragilidade semelhante  a de qualquer ser humano, mas que até então não era aparente em meu pai. Ajudei-o na sua depressão e nos seis meses em que morou comigo, tive oportunidade de conversar com um homem culto, fechado, brilhante, totalmente fragilizado pela ausência de minha mãe e pedindo uma aproximação maior comigo, algo que faltou em tantos anos que passei em São Paulo. Foram meses que valeram por anos. Suas netas lembram até hoje dessa convivência.

Quando meus problemas surgiram, logo em seguida, lá estava ele para me ajudar e dar “colo”. Porém, meu pai não queria mais ficar sozinho. Clamava interiormente pela minha mãe. Solitário, mas solidário a mim, aguentou o quanto pôde. Foi forte para me fazer forte e foi embora firme na sua decisão de estar com minha mãe. Deixou em mim a certeza de que aquelas conversas de tardes inteiras comigo eram o seu legado de pai.

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6 comentários

  • OLiver disse:

    Maurinho,
    Não! Mauro,

    Afinal, nem chegamos a comer salaminho no Castelinho, como eventualmente posso ter feito com seu irmão e certamente o fiz com amigos comuns.

    Sim, melhor sem diminutivo… recomeço…

    Caríssimo (permita-me) Mauro ,

    Suas crônicas clamam pelo uso no diminutivo em seu nome, pois nos permitem uma incursão ao mais profundo de sua intimidade, ao mesmo tempo em que, apesar de tudo sobre o caso ser bastante diferente, evocam as emoções de nossa intimidade e nos fazem parecer tão próximos: aqui, a relação com seu pai; ali, a praia e eu; perdão, e você…

    Bateu enorme saudade! e alegria por lembrar do meu.

    Abração (aumentativo que tem a ver com meu diâmetro e a sinceridade, mesmo quando dado em quem não conheço, ou ao que dele precisa ou que o merece, pela energia que carrega).
    Obrigado, de novo!

  • Chico Nobrega disse:

    Que maravilha de texto, Maurinho!

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