A ideia partiu de um dos mais velhos da turma de amigos da Urca: acampar no pé das Agulhas Negras, formação rochosa que fica próxima a Resende. Era uma aventura e tanto montar as barracas a 2.800 metros de altitude, em pleno inverno, num local onde a vegetação era totalmente rala e nada crescia mais do que cinquenta centímetros. E onde não faltavam pedras e esconderijos para escorpiões, cobras e outras criaturas desagradáveis. A participação de todos só seria possível com um planejamento forte e, é claro, a autorização dos pais. Afinal, éramos adolescentes naqueles tempos, na década de 1970. Era preciso estocar comida para uma semana, providenciar as barracas, roupas de frio e soro anti-ofídico – as cobras eram a maior preocupação dos pais – além de equipamentos de escalada. Vivemos dias de intensa empolgação.
Para o transporte havia apenas um fusca 66, café com leite, que levaria a bagagem mais pesada. Iríamos mesmo de ônibus com nossas mochilas com roupas e os sacos de dormir. O ônibus nos deixava na estrada. Depois, restava uma subida de uns onze quilômetros por uma estrada muito pedregosa até o local do acampamento. Era um descampado onde cabiam umas quinze barracas. A casa dos guardas florestais ficava por perto, bem como um riacho e uma micro usina hidrelétrica que gerava luz para o abrigo com a formação de um pequeno lago. O lugar era usado para o treinamento dos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras.
Eu estava ali pela farra e por gostar das caminhadas. Nunca escalei nada com mais três metros. O pânico de altura não permitia. No princípio, não estava achando nada muito engraçado. Éramos seis para duas barracas. Acontece que uma delas foi reservada para o único casal, os mais velhos do grupo, que estavam com aquele fusca. O jeito era nos espremermos – quatro marmanjos — na outra barraca que, segundo as recomendações do fabricante, era perfeita para três ocupantes. Dormíamos em sacos de dormir, com uma pedra quente envolta em jornal para garantir algum calor. Durante a noite, a temperatura chegava a três, cinco graus centígrados.
À noite, os guardas florestais faziam uma pequena fogueira. Só eles tinham lenha e permissão para isso, afinal se tratava de uma área de parque nacional. Eram muito solícitos, mas para conseguir dormir na casa que ocupavam seria preciso muita sorte. Havia um quarto com quatro beliches, permanentemente ocupados por alpinistas.
Nossa aventura incluía sete dias usando o mato como banheiro, uma saborosa dieta à base de sanduíche de atum, macarrão feito no fogareiro de uma boca, biscoitos, café instantâneo e outros práticos enlatados. O simples ato de escovar os dentes e lavar o rosto pela manhã já consistia no primeiro sacrifício. Durante a madrugada, a água congelava no cano da única bica. Só era possível utilizá-la depois das dez da manhã. Mesmo assim, era tão fria que fazia doer os dentes.
A higiene corporal merece um capítulo aparte. Quando nós mesmos não aguentávamos mais o nosso cheiro, nos dirigíamos ao lago, que não passava de uma piscina grande, para tomar um banho seguindo rigidamente a técnica especial ensinada pelos alpinistas itinerantes. Antes de mergulhar na água fria (muito fria), bebia-se um gole grande da bebida disponível (cachaça, vodca ou uísque). Mergulhava-se até chegar do outro lado o mais rápido possível, saía-se da água, ensaboava-se o corpo mal e porcamente. Hora de outro gole, novo mergulho e, finalmente, outro gole antes de se enxugar e colocar a roupa.
Hoje em dia, quando me lembro de tudo, pergunto-me por que maltratei meu corpo de tal forma. Não consigo responder. Na verdade, rio sozinho e lembro de alguns detalhes. Aquelas viagens guardaram momentos dos quais ninguém se esquece. A gente se divertia muito sem fazer grandes coisas e tomando verdadeiros porres com bebidas de última qualidade para aplacar o frio. À noite, o céu era algo que jamais havíamos visto. Contávamos sempre algumas estrelas cadentes, fenômeno que nos deixava quase sem fala. A sensação de liberdade por estar ali por conta própria, sem nenhum tipo de comunicação com a “civilização” era muito boa. Mas só nos damos conta do frio na barriga que deviam sentir nossos pais quando, nos dias de hoje, um filho nos avisa que viajará sozinho.
É claro que surgiam discussões sobre a divisão das tarefas, os atritos normais de qualquer viagem. A verdade é que a amizade entre nós só ficava mais forte a cada aventura. E passados quarenta anos, suas lembranças estão vivas entre nós e ainda rendem assunto para muitas conversas.
Republicou isso em Tudo Sobre Tudoe comentado:
Homenagem ao Dia do Amigo. Nada como acampar no mato para consolidar amizades para o resto da vida. Mas é recomendável que a experiência se dê na adolescência, quando o corpo ainda suporta ser maltratado.
Maurinho, também estive lá em 1975 e 76. Na primeira vez, ficamos no abrigo Macenas, semidestruído, ao lado de uma torre de retransmissão de TV. Na segunda, acampamos nesse lugar que vc descreve, no “camping” ao lado do Rebouças. Escalamos as Prateleiras e o próprio Pico das Agulhas Negras. Inesquecível.
Fala Chico!
No total fomos 4 vezes, em 3 acampamos ao lado do Rebouças e em uma tivemos que ficar na “geladeira” pois a AMAN estava em treinamento. Muito bom! Obrigado, abs!
Amei, voltei muitos anos atras com as fotos e com o texto. Lindo Mauro, obrigada pela amizade que nunca acabou e obrigada por trazer de volta lembranças tão gostosas! Um beijo grande e ate Julho!
Jamais esquecerei destas “aventuras” que fizemos, além da famosa ida a Campos do Jordão. Bjs!