O costão do tiê-sangue

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Às vezes eu estico o percurso que faço pela orla da baía da Guanabara até um recanto próximo à praia Vermelha. É um pequeno caminho de pouco mais de 1.200m de extensão que leva até o início da trilha para escalar o Pão de Açúcar. Hoje em dia, é chamado de pista Cláudio Coutinho. É um lugar delicioso para uma pequena e tranquila caminhada. Quer dizer, tranquila a não ser nos finais de semana.

Anda-se entre a autêntica Mata Atlântica e o mar que bate na pedra, a uns 15 metros abaixo. Nesse caso, a pedra é o morro da Urca, primeira parada do bondinho. Entre pássaros, alguns lagartos, dezenas e dezenas de micos, escutam-se as ondas batendo com força. Quando a vegetação se abre é possível ver os navios que se preparam para entrar na baía da Guanabara. Deve ter sido mais ou menos essa a visão dos índios quando os primeiros colonizadores baixaram por aqui.

Mesmo com toda a agitação nos finais de semana, é justamente nesses dias que observo os visitantes e me sinto em casa. Há caminhantes como eu, às vezes em passo acelerado, acostumados com aquela vista toda, e há aqueles que estão ali em busca de um pouco de ar de mais puro e do perfume da maresia. Tem os corredores, alguns estressados pois as pessoas não prestam muita atenção neles. Volta e meia acontecem esbarrões. Como já pratiquei muita corrida, não acho que as condições por lá sejam muito boas. O asfalto é ruim e a pista irregular.

E tem quem vêm passear. E aí, toma foto, toma selfie, tudo pontuado por pequenas exclamações sobre a beleza da paisagem, sobre as borboletas de asas turquesa e é claro, com os micos que acompanham a todos pelas árvores e pelos muros em busca de comida sem esforço. Quando alguém desobedece às ordens de não alimentá-los e saca uma fruta qualquer, acontece um verdadeiro congestionamento de gente. A pista fica cheia de crianças sorridentes nos colos dos pais, enquanto os bichos fazem a festa. Realmente, vê-los pegando bananas e outras frutas com aquelas mãos pequeninas e olhando para todos é uma cena que remete a Darwin.

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Conheci esse caminho quando tinha meus catorze anos. Ainda era de terra batida, usado só para os que queriam escalar o Pão de Açúcar, no caminho chamado Costão, pelos pescadores e por quem queria chegar ao morro da Urca sem pagar a passagem do bondinho. Também era um lugar onde eu costumava ir namorar inocentemente na minha adolescência. Foi lá também que eu descobri meu pânico de altura numa tarde em que meu irmão e seus amigos que gostavam de escalar tentaram me levar para o esporte.

Aliás, em termos de escalada, eles fizeram ali o que se chama de “conquista”, que é quando alguém faz um caminho inédito para chegar ao cume de alguma montanha. Nesse caso específico, eles “conquistaram” a pedra do Urubu colocando seus grampos, batendo exaustivamente na pedra durante meses. Na época, o material era todo importado, trazido pelos pais nas viagens ao exterior e festejado como se fossem brinquedos novos.

Como escrevi antes, nos fins de semana, o caminho fica lotado de sotaques, grupos de jovens ou não tão jovens, famílias e muita gente tirando todo o tipo de foto. Mas quem mais chama atenção em toda a paisagem é o tié-sangue, popularmente conhecido como sangue-de-boi, um passarinho com um vermelho muito forte e bonito e de asas pretas. Ele contrasta de forma espetacular com as folhas das árvores e às vezes arranca até gritos de “Mengo!” de alguns torcedores mais fanáticos. Por mais que eu já tenha visto esse passarinho, nunca deixo de me maravilhar com a sua cor a cada vez que o vejo.

E tenho até uma pergunta que não me sai da cabeça. Antes de ser asfaltado e batizado com o nome do técnico de futebol Cláudio Coutinho, a trilha era conhecida também pelo nome de Caminho do Bem-te-vi. Não seria isso uma tremenda injustiça à majestade do tiê?

 

 

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