O país de última hora

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45 I

Fui visitar a excelente exposição com as obras de Salvador Dali no Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio, na companhia de minha caçula, durante a Copa do Mundo. Se não me falha a memória, a mostra tinha sido inaugurada um mês antes e ainda ficaria em cartaz por outros dois. Estava vazia e pudemos apreciar tudo com a maior tranquilidade. Soube que no último fim de semana da exposição, a fila na entrada era de quase 500 metros, com quase duas horas de espera. Na minha opinião, é mais fácil se chicotear em praça pública, se o problema for pagar penitência.

Às vezes tenho a impressão de que deve haver algo na água ou no ar do país que nos faz deixar as coisas para a última hora. Qualquer coisa, não apenas as obrigações. Na maioria das vezes não é uma questão de preguiça, sim um hábito arraigado.

As frases “não tenho para respirar” ou “nem para ir ao banheiro” são usadas por todos, em todos os lugares, como desculpa, ou até por quem se deseja fazer de mais importante. Sem dúvida, hoje em dia perde-se muito mais tempo nos deslocamentos, em compensação existem tantas facilidades que acredito que haja uma espécie de equilíbrio entre a rotina atual e de trinta anos atrás, por exemplo. Com ou sem engarrafamentos ou agendas recheadas, o fato é que há séculos o brasileiro deixa tudo para o final. Se houver um estudo sociológico sobre o assunto, quero lê-lo.

Tudo por aqui parece que vai no tranco. Até no futebol, paixão nacional, tem sido assim e na última Copa causou imensa frustração. Uma semana antes do primeiro jogo da Seleção, não se via ruas enfeitadas, eram poucas as bandeiras nas janelas, muito #nãovaitercopa, e de repente, na última hora, ressurgiu o sentimento. E aí começou o corre-corre atrás de bandeirinhas para os carros, camisas da rua da Alfândega para as crianças, esmaltes verde e amarelo esgotando-se nas farmácias. Enfim, o de sempre. E estamos falando de coisas agradáveis, de lazer.

45 IV

E a data de entrega do imposto de renda? Isso sempre foi uma luta entre a Receita Federal e os contribuintes. Não gosto de pagar imposto. Ninguém gosta, ainda mais quando é desperdiçado, mas é uma obrigação. Então para que correr o eterno risco do último dia? Hoje o problema é a lentidão do site da Receita para receber as declarações. Quando comecei minha vida de contribuinte, o problema era a fila no banco, com as pessoas correndo pela calçada faltando cinco minutos para o prazo estendido!

Tudo nosso é assim, como diria o antigo locutor de futebol: na última volta do ponteiro. Temos até a expressão corriqueira, “aos 45 do segundo tempo” como se fosse uma coisa boa!

Ontem fomos às urnas decidir quem serão os nossos representantes no executivo e legislativo, nas esferas estadual e federal. Como sempre, o horário eleitoral obrigatório nas rádios e TVs encheu o saco de todos, muito mais pelo mesmo formato e pelas mentiras do que pela falta de importância. Todos reclamam, começam a dizer que votarão nulo, que só custa R$3,52 se não for votar. Ouve-se a tradicional ladainha do cidadão que pede muito ao Estado mas não sabe fazer sua parte. Mas de repente, como se algo mudasse no ar, as eleições começaram a ganhar contornos de campeonato e não há nada que o brasileiro goste mais do que de ganhar. Todos gostam, poderiam dizer. É verdade, mas a máxima cunhada por Nelson Piquet nos acompanha como uma marca: “O segundo é o primeiro dos últimos”. O eleitor está mais preocupado em quem votar e sim em quem vai ganhar. O último debate eleitoral tem audiência de novela. Da mesma forma que todos se transformam em técnicos de futebol na Copa, proliferam analistas políticos dignos de editorial em jornal quando faltam dois dias para o pleito.

Nessas eleições, na verdade, isso aconteceu duas vezes. A primeira se deu após o acidente fatal do candidato Eduardo Campos, quando vi pessoas discorrendo sobre suas qualidades, como se o conhecessem havia décadas. A segunda foi agora, na reta final do primeiro turno, quando na padaria perto de casa vi pessoas discutindo as qualidades dos candidatos, citando fatos de suas vidas públicas.

O que será que acontece por aqui quando se aproximam os prazos fatais ou as datas dos acontecimentos? Esse personagem brasilis merecia de fato uma análise antropológica.

Enquanto não vejo esse estudo continuarei a ver as pessoas entrarem no cinema depois que as luzes já se apagaram, os atores pedirem para os espectadores para não se atrasarem, médicos e dentistas numa competição para ver quem demora mais para realizar o atendimento e todos pedindo mais prazo para declarar o imposto de renda. E continuaremos a caminhar felizes da vida. Somos assim!

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