Na famosa entrevista concedida ao francês François Truffaut, o diretor de cinema Alfred Hitchcock faz em determinado momento uma referência ao chamado efeito Kuleshov. Nos primórdios do século XX, o diretor russo Lev Kuleshov demonstrou a importância da montagem cinematográfica por meio de um pequeno filme estrelado por Ivan Mosjouskine, um galã da época. Nele, um close do ator se alternava com uma série de outras imagens: um prato de sopa, um caixão, uma mulher deitada no divã. No final da exibição, o público saudou a expressividade extrema do ídolo. Diante da sopa, demonstrava os estertores de um famélico. Diante do caixão, o sofrimento intenso. Diante da mulher, evidenciava-se a luxúria. O problema era que o diretor havia usado a mesma imagem do ator na sequência. As conclusões eram todas da plateia.
Veja no YouTube uma explicação do diretor britânico sobre o efeito.
Uma versão contemporânea do efeito Kuleshov acontece nas redes sociais, onde se publicam diariamente centenas de imagens, algumas conduzindo a conclusões aparentemente inquestionáveis. Recentemente, começou a circular por algumas timelines a foto de um grupo de escolares no Rijks Museum, em Amsterdã, absortos em seus celulares, ignorando ao fundo o quadro Ronda noturna, obra-prima de Rembrandt. Logo surgiram os comentários com questionamentos lastimosos sobre o que o futuro reserva para uma geração de jovens tão grudados em suas telinhas a ponto de se tornarem insensíveis às belezas (analógicas) que os cercam. Muito provavelmente, os adolescentes deveriam estar trocando mensagens de texto, acessando redes sociais ou mesmo enviando selfies recém-tirados diante da pintura. Para onde caminha a humanidade?
A internauta Denise Bergier não se contentou com as respostas prontas. Teve a pachorra de questionar o senso comum e enviar um e-mail para o Rijksmuseum em 7 de abril. A resposta não tardou, assinada pela secretária executiva Pia van de Wiel. Ela esclareceu que a foto representa um grupo de escolares que trabalhava em uma tarefa com o uso de um aplicativo em seus celulares. Denise divulgou a resposta na sua página do Facebook.
Infelizmente, é raro encontrar gente disposta ao saudável exercício do ceticismo e de correr atrás da origem de determinados posts que viralizam, gerando verdadeiras lendas urbanas. Proliferam casos em que uma mesma foto ganha interpretações variadas, gerando protestos ou endossos, servindo para atacar ou enaltecer figuras públicas. Sim, uma imagem vale mais do que mil palavras e essas mil palavras podem ser empregadas para gerar as mais variadas – e factíveis histórias.
No final das contas, temos que admitir. Kuleshev estava certo. Contexto é tudo. E sua falta torna visível até chifre em cabeça de cavalo. (por Livia de Almeida)
Muito obrigada.
Muito pertinente nos dias atuais.
Debate importantíssimo. Infelizmente muitos preferem o caminho confortável dos pré-julgamentos, porque é mais fácil ter explicação para tudo do que admitir a complexidade do mundo. Com um canal tão fácil para se expressar, o espaço da fala está ficando muito maior do que o da escuta, a exposição maior do que a reflexão. Escrevi um pouco no meu blog sobre esse assunto, se quiser dar uma olhada… Megafone | Miscelânea
http://tokyorio.com/2013/12/30/megafone/
Tem toda razão, Taiga. E como vc mesma constata no seu ótimo post, essa facilidade de comunicação infelizmente tem estimulado julgamentos apressados, simplistas e maniqueístas. É um tema recorrente, que merece ser discutido. Aqui no blog, também rendeu um dos nossos primeiros posts. http://blogtudosobretudo.com/2013/09/10/a-rima-nao-e-a-solucao/ Um grande abraço.
Muito bom o post. É um alento encontrar pessoas como você. Sempre que consigo trocar ideias construtivas ganho um estímulo a mais para continuar escrevendo. Tomara que consigamos ampliar esse diálogo, fazer alguma diferença, nem que seja pequena… Obrigada pela leitura, gosto muito de acompanhar seu blog. Abraço!
Muito obrigada, Taiga! É uma honra saber que temos uma leitora tão sensível num lugar tão distante quanto Tóquio. Parabéns pelo seu blog.