Carta para uma desconhecida

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“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay” cantava Rita Lee a frase extraída do livro Dom Quixote de Miguel de Cervantes Saavedra. E é o que  não sai da minha cabeça. Justo eu, que tinha alertado aos incautos sobre os poderes das viradas de cabelo, tento agora não pensar naquela mulher que, diante de mim, sacudiu o cabelo negro, liso e cumprido, sem nem me notar, e inadvertidamente conseguiu demolir uma barreira que eu havia levantado havia seis anos. O pior é não saber se tornarei a encontrá-la  naquela loja de sucos. A bandeira que dei foi tão grande que o Chico, vendedor que faz meu mamão com laranja e gelo picado sem açúcar, não se conteve:

— Maurão, olha o torcicolo!!

Voltei nos quatro dias seguintes, dois no mesmo horário, e dois em horários diferentes, e o Chico:

— Nada…

Resolvi escrever  uma carta para a desconhecida e deixa-la com o Chico.

Morena,

Tenho a sensação de que vejo você em todos os lugares. Aliás, queria vê-la em todos os lugares. Gostaria de ter uma chance de falar com você, mas ao mesmo tempo se a ocasião aparecesse, eu ficaria apavorado. Acho que  perdi o “jeito”.

Imagino você meio blasé, pelo jeito de jogar o cabelo, mas garanto sou bom nisso também. Você vai ver, até que os dois comecem a rir do ridículo da situação e você mostre quem é. Gostaria muito que fosse do jeito que imagino, mas sempre com defeitos. Muitos defeitos, aliás, para contrabalançar os meus.

Não consegui ver a cor dos seus olhos por causa dos sensualíssimos óculos escuros. Espero que sejam de grau. Mulher de óculos é um charme para mim. Também não vi o sorriso, mas reparei na generosidade pela gorjeta que deixou pro Chico. Comecei a achar que foi por isso que ele nem me disse seu nome.

Percebi que gosta sol forte, pele morena,  tratada com cuidado, assim como os cabelos. Gosto de mulheres que se cuidam, sem ser necessariamente sócias da academia ou do salão. Acho que por comer um sanduíche em pé, com suco de abacaxi, deve ter a sofisticação na medida certa. É apenas um palpite.

E aqui estou eu,  tentando adivinhar as coisas, preencher as lacunas, e nem sei se receberá e lerá “estas mal traçadas linhas”…

Permita-me que me apresente. Sou um carioca que quase virou paulista, tricolor aqui e lá por simpatia, colecionador de histórias boas e outras nem tanto, talvez pela qualidade dos personagens. Assumo ter uma grande propensão a procurar um amor, mas sentir, ao mesmo tempo, um medo imenso de encontrá-lo. Mas agora que eu o encontrei, vou lutar por ele.

A cabeça não é muito boa, mas às vezes tem momentos de lucidez. Na maior parte do tempo, observa o que acontece em volta e gosta muito de analisar o comportamento das mulheres. Não é uma fixação. Ela procura encontrar uma maneira nova de conquistar, de fugir dos lugares comuns. Você tem que concordar que cartas, nos dias de hoje, são no mínimo antiquadas.

Há quem diga que eu sou do contra. Discordo, mas admito ser um pouco marrento. Mesmo assim, procuro ser sempre educado e devo ser mesmo, porque muita gente me diz isso. Aliás, pode perguntar pro Chico.

Tenho a mania de ser coerente. Falo assim, porque hoje em dia as pessoas parecem não ter mais compromisso com essas coisas. Disseram amarelo ontem, convenceram, brigaram, e hoje falam azul com a desfaçatez e a convicção de que nunca pronunciaram nada diferente. Essa minha mania me causou muitas decepções, principalmente no campo profissional, mas essas histórias não são interessantes.

Se há uma polêmica, qualquer que seja, saiba que terei uma opinião, e quantos assuntos forem, tantas serão as opiniões e as discussões. Mas veja, jamais levanto a voz, por mais imbecil que considere a contraparte. Nesses momentos de extrema pressão pela estupidez humana, digo algo e me retiro com a máxima tranquilidade. No entanto não espere tanta fleugma na hora de uma DR. Nessa hora, a coisa fica um pouco complicada.

Minhas duas filhas são a razão total de eu ainda estar aqui. Do seu jeito,  cada uma consegue me tocar profundamente e me emocionar sempre, e acho que com essa capacidade me manterão ainda esperto e caminhando pela orla carioca. Aliás, eu costumava correr por gosto. Agora que passou a ser uma obrigação, confesso que perdeu um pouco a graça.

Gosto das coisas simples assim como das sofisticadas.

Com a idade, já passados os cinquenta há algum tempo, persiste em mim algum mau humor e uma acidez constante, mas jamais sem perder uma certa vocação para o deboche e a vontade de achar graça nas coisas.

Espero que eu tenha despertado em você a vontade de me conhecer, por menor que seja.

Saiba que não quero amizade. Quero dar flores. Quero mais nascer do que por do sol. Gosto de me dar e faz tempo que não tenho essa vontade que você fez reaparecer em mim, mas também gosto muito de receber. E aí, Morena, a verdade é que hoje não quero receber nada de ninguém, a não ser de você.

Todos os  dias enquanto corro para chegar na loja de sucos, escuto o Gonzaguinha cantando devagar, na minha cabeça:  “…espere por mim, Morena, espere que eu chego já, o amor por você Morena, faz a saudade me apressar…”

Mauro

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