Presente de casamento

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Foi àquele casamento apenas para agradar seus pais. Não tinha mais nenhum vínculo com aquela amizade de infância e adolescência que nascera da convivência entre as duas famílias. Naqueles tempos, ela havia sido tudo para ele: amiga, confidente, namorada. Juntos, passaram por todos aqueles momentos terríveis da adolescência. Escolhas, dúvidas, vacilações. Tudo compartilhado ao extremo. Mas já não se viam havia mais de quinze anos. E agora acompanhava os pais na cerimônia de casamento dela, situação que o deixava estranhamente incomodado.

— Podia ser com você, não é? – repetiu a mãe pela enésima vez, desde que receberam o convite.

— Você comprou o presente que eu mandei? — perguntou o pai pela quinquagésima vez desde que ele havia chegado de São Paulo, quatro dias antes.

Com a calma de sempre, ele sorriu para a mãe e respondeu afirmativamente para o pai.

— O que você mandou de presente? Afinal, ela me ligou pessoalmente para saber seu endereço naquela cidade que me recuso a dizer o nome desde que você foi embora.

A pergunta não estava no script.

— Sem dramas, mãe.

Ela o olhou indignada.

Para evitar a pergunta, olhou para trás e cumprimentou outro amigo das antigas, que havia chegado com a mulher e as duas filhas. “Como parecem dez anos mais velhos do que eu”, pensou quase em voz alta. Tinha essa mania.

— Se você não comprou nada, me avisa que amanhã resolvemos isso – insistiu o pai.

— Nem os pais dela nem nós conseguimos entender porque vocês se afastaram -– a mãe parecia decidida a não lhe dar trégua.

A música começou e todos se levantaram na igreja. Com a entrada do noivo, ele se livrou daquele interrogatório sem fim. A última observação da mãe o deixara profundamente irritado. O suor descia pelas costas e isso era algo que detestava.

Quando os padrinhos começam a entrar, a mãe disparou um tiro mortal:

— Fiquei chateada, intrigada e triste porque ela não te chamou para ser um dos padrinhos.

Ele delicadamente beliscou o braço da mãe e levou o dedo a boca fazendo sinal de silêncio. Os dois riram.

Todos posicionados no altar, silêncio na igreja. O sexteto de música clássica toca Ode a Santa Cecília, de Handel. A santa é considerada a padroeira dos músicos e é aquela com mais basílicas dedicadas em seu nome, em Roma. Lembrou-se disso tudo em segundos.

— Quando nós nos casarmos, eu já serei uma pianista famosa e você um médico brilhante. E quando eu entrar na igreja, vai tocar Ode a Santa Cecilia. Quer escutar?

Deitado no sofá velho da sala de música da casa dela, ele a ouvia tocar enquanto estudava para o vestibular de medicina.

Deixando as lembranças, percebeu que ela ficou surpresa ao vê-lo na igreja, mas desviou o olhar e com um aceno com a cabeça saudou o pai dela. Na extensa fila de cumprimentos, sua cabeça latejava de nervosismo, enquanto outros convidados tiravam selfies com o casal e manifestavam carinho de forma efusiva, com muitas trocas de beijos e abraços entre colegas de colégio e de adolescência.

— Os nossos amigos mais famosos numa mesma celebração. – disse em voz alta o mais vagabundo dos amigos, que se tornara um controvertido advogado criminalista.

O suor seguia escorrendo. Quando acabaria aquele martírio? Ainda haveria a festa…

— Nosso cardiologista internacional e nossa premiada pianista – continuou o inconveniente em tom elevado.

De maneira protocolar, tentou cumprimentar os pais dela, mas seus “ex- futuros sogros” foram efusivos, e a mãe dela, perto do seu ouvido, soltou um elogio:

— Você está cada dia mais bonito e charmoso. Hoje vai encontrar uma noiva. A Alice tem muitas amigas bonitas e solteiras.

Em seguida, recebeu um sorriso e um forte abraço do pai dela.

Os olhos dela brilhavam de felicidade. Ele sentiu todo o peso do mundo no coração.

— Obrigado por ter vindo. Quero dançar com você…

Um sorriso e um “sim” com a cabeça. Cumprimentou o noivo e os pais dele sem nenhum entusiasmo. Nauseado, avisou aos pais que pegaria o carro.

Na festa, procurou se distrair e conversar com amigos que não via havia anos, sempre esperando a tal “dança prometida”. Passados todos os protocolos de entrada dos noivos, valsas e coisas do gênero, a festa realmente se animou. Aos poucos foi relaxando com a ajuda do uísque, até que a irmã dela apareceu e o levou para tirar fotos. A noiva no meio e todos os colegas em volta. Até que alguém grita:

— Arthur fica ao lado dela. Os AAs juntos de novo…

Sem graça, ele foi e as fotos recomeçam. Sentiu que alguém mexia no seu bolso, mas era tanta gente falando, gritando, e brindando que nem conseguiu ver direito o que era.

Todos na pista. O uísque fazia o efeito correto.

De volta a seu antigo quarto na casa dos pais, foi tomado por um sentimento esquisito, inexplicável. Sentado na cama, cansado da festa e das emoções, ele pegou um envelope que fora colocado no bolso do seu paletó.

“O melhor presente que recebi foi a partitura da Ode a Santa Cecília onde escrevemos nossos nomes e promessas de amor eterno. Sei que não julga ninguém, então posso dizer que o amarei para sempre. Fomos feitos um para o outro, mas juntos não combinamos. Alice.”

Com o seu perfume no papel, ele foi dormir como médico consagrado, mas queria acordar de novo como estudante.

AAs IV

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