Rápido no gatilho

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Um par de olhos muito verdes me encarava com um ar de braveza e questionamento, por trás de elegantes óculos com aro de tartaruga. Sua dona tinha cabelos escuros e longos, mãos finas e unhas claras (como uma mulher pode querer pintá-las com esmalte escuro?). De onde eu estava, podia sentir um perfume delicioso. Pela primeira vez, eu me encontrava frente a frente com a Morena, na loja de sucos, e ela estava furiosa.

Devo dizer que fui o responsável por adiar o fatídico encontro algumas vezes. Depois de ter recebido a resposta cheia de marra que aquela mulher escreveu para minha declaração, decidi não dar mole. (Tudo começou, leitor, com Carta para uma desconhecida e a resposta da Morena em Palavras da desconhecida — visite os textos para entender meu drama). Mesmo depois que descobri o horário que costumava aparecer na loja de sucos, preferi me manter a distância e apenas observar. Cheguei a vê-la duas vezes, um tanto displicente no vestir. Para mim, pareceu que olhava para os lados como se procurasse alguém. Será? Na primeira, reparei que conversou com o Chico de um jeito mais animado do que da outra vez que a vi. Quando saiu, fui para a loja.

— Tá maluco?! Tá rasgando dinheiro?! A Morena aqui dando moleza, perguntando se tinha carta, e você do outro lado da rua? Ela deve ser muito míope!

Chico esbravejava, falava sozinho e ao mesmo tempo fazia pedidos para a cozinha.

Não falei nada, chamei o gerente, um sujeito mal-humorado que tentava parar de fumar e vivia com aquele cigarro eletrônico. Coisa complicada, esse negócio de parar de fumar.

— “Seu” Antunes posso deixar um lanche pago para alguém?

—  Se for para me dar dinheiro, pode tudo!

—  A moça morena que acabou de sair… se ela voltar queria deixar pago o que ela pedir.

—  É, tô sabendo dessa “historinha” de vocês. O  Chico fica por aí parecendo uma “maria-casamenteira”. Se isso ajudar ele a sossegar o facho,  manda ver a grana.

— Obrigado

Na segunda vez, de novo fiquei de longe. Morena fez seu lanche e quando foi pagar “Seu” Antunes fez um gesto para dizer que estava tudo acertado. A marrenta balançou a cabeça e foi embora praticamente batendo o pé.

Resolvi nem aparecer para não escutar reclamação dos dois.

Sei que sou de um tempo em que as paqueras podiam demorar. Mas o prazo para ter aquela conversa com a Morena estava quase com validade vencida. Estava na hora. No dia seguinte, eu falaria com ela.

Peguei-me escolhendo camisa, colocando mais perfume, conferindo hálito. O que é que deu em mim? Será que estou ficando maluco? Ri e saí. Chovia. A natureza parecia conspirar contra, mas não custava tentar.

Fui.

E ali estava eu diante de uma morena furiosa.

— Não admito que paguem as coisas para mim. Ainda mais um desconhecido! Espero que seja a última vez.

— Muito prazer, Mauro. Fico feliz. Então haverá uma próxima vez!

Ela ficou desconcertada. Uma ponta de sorriso apareceu num canto dos lábios, como quem se desarma, a postura mudou.

— Muito prazer. Ok. Um a zero para você.

Lançou-me um olhar da cabeça aos pés, que quase me deixou sem graça, e emendou agradecendo pela delicadeza da carta.

— Chegou há muito tempo?

— Agorinha. Fugi da chuva.

A princípio fiquei um pouco nervoso. Acho que perdi a prática nesse tipo de conversa. Mas aos poucos fui me soltando e ela também. Fez piada sobre minhas leituras econômicas na loja de sucos.

— Desculpe se pareci rude, mas realmente acho que não era mesmo a escolha mais apropriada – disse rindo.

A voz era calma, os gestos firmes. Com frequência, mexia no cabelo. Aqueles graus de miopia eram um charme a mais. A conversa começa a fluir, mas percebemos olhares atentos e ouvidos mais atentos ainda.

— A conversa está boa, mas aqui não é o lugar – disse ela, de uma forma um tanto abrupta.

Concordei com a cabeça e retruquei depressa.

— Certo. Jantar hoje? Onde te pego e a que horas?

— Mercado financeiro, rápido no gatilho, perguntas objetivas. Nove da noite, celular aqui no cartão, o endereço de casa eu escrevo aqui atrás.

Paguei o meu lanche e deixei uma gorjeta legal para o Chico.

A noite promete.

olhos verdes

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