No final da primavera, umas pancadas de chuva bem fortes começam a cair sobre São Paulo. Era um dia tempestuoso desses, uma sexta-feira, uma daquelas em que o chefe não quer ir para casa e todo mundo tem que engolir uma reunião sem nenhum propósito ou objetivo. Lá fora, muita trovoada ouvida entre murmúrios de raiva. A chuva batia com força na janela de onde se via a Avenida Paulista completamente parada.
Do outro lado da mesa, percebi que ela estava aflita, olhando o relógio. Que pena. Tinha compromisso e eu querendo compromisso com ela. Era casual Friday e todos estavam mais à vontade. De propósito, me arrumei do jeito que ela havia dito que gostava: camisa branca e calça jeans. Mesmo em dia mais informal, ela dificilmente descia do salto. Não era a roupa que me atraía, mas como sempre o sorriso de lado e os cabelos pretos e longos.
O dia tinha sido semelhante aos anteriores, com muitas brincadeiras perto da copa na hora de servir o café, alguns esbarrões propositais e adivinhações sobre o perfume que cada um usava.
Tentei atrair seu olhar e perguntar se precisava ir embora. Quando a reunião acabou, ela me procurou:
— Preciso comprar dois CDs de música clássica. Você me ajuda?
— Não sou grande conhecedor, mas posso tentar. Quer ir na FNAC aqui perto?
— Mas com essa chuva? – ainda emendei.
–Vamos no meu carro e depois te deixo onde for melhor.
No carro, ela me surpreendeu:
— Vou por um CD com músicas que me lembram você.
— São novas ou você vai dizer que sou muito mais velho?
— São lindas!
Parados no trânsito, escutamos Elton John, Rod Stewart, Paul McCartney. Tinha acertado no meu gosto. É claro que, àquela altura, havíamos passado em muito da fase do flerte e engatado uma paquera desenfreada. Eu já tinha até escrito coisas para ela. Mas nunca recebi sinais tão claros de receptividade. Era estranho, mas depois de dezoito anos, eu voltava a sentir algo diferente. Eu não podia ter me apaixonado por aquela menina. Pelo menos, não deveria!
Fazia menos de um ano que assinara a separação, mas ainda dividia o teto com minha ex-mulher. Onde esse sentimento iria dar?
— Esse trânsito tem uma coisa de bom. As músicas me fazem viajar e sinto mais o seu perfume. Adoro homens perfumados!
Foi uma direta e tanto! Eu estava desacostumado. O que fazia agora? Respondia ou não? Só consegui dar um sorriso.
Dentro da FNAC, muitas brincadeiras. Assustado, eu me sentia um adolescente. Que ridículo!
Fomos para a seção de música erudita e nem cara de entendido eu podia fazer. Tudo o que eu sabia havia aprendido com minha ex-mulher. Senti que eu era um escroto e ainda por cima estava prestes a cometer uma traição. Mas que traição? O que aprendi?
Sugeri algo mais tradicional, Mozart pela Filarmônica de Berlim. Bonito, nada comprometedor.
— Legal. Ele adora aquele filme que conta a história dele.
— Ele quem?
— Meu tio e padrinho. Os CDs são para ele.
Na verdade eu queria era resolver logo a compra e convidá-la para um cappuccino. Não parava de chover, eu já enviara uma mensagem para as filhas avisando que não apareceria para o jantar. Eu estava pronto para o que viesse.
Os deuses do namoro ficaram do meu lado. Começou uma apresentação de um pequeno conjunto de jazz, fazendo-a apressar a compra e aceitar meu convite.
— Preciso aprender um pouco mais de jazz…
— Posso ajudar, mas para isso precisamos passar um pouco mais de tempo juntos.
Sorrisos.
— O que você escreveu para mim… é de verdade ou é só uma tentativa de “ganhar” a nova estagiária?
— Tudo que escrevo, eu sinto. – Fiz uma pausa. — Mas que parte do que escrevi você acha que pode não ser verdade?
— Uma parte em que você começa com “eu…”
Interrompi a frase com um beijo e disse:
— Eu te amo.
Como chovia muito, nos arriscamos como adolescentes. Ficamos nos beijando dentro do carro. Fui embora totalmente embevecido por aquela menina que seria durante muitos meses uma mulher extraordinária para mim.
Sempre que leio seus textos penso que o mundo continua girando e as histórias acontecendo. Que aquele homem com o qual sonhei e fantasiei tanto, deva estar hoje conhecendo pessoas, ninfetas ou mulheres feitas, cheias de atrativo e beleza. Penso que focar no trabalho alivia a sensação de desconforto e que quando eu olhar ao redor novamente, verei cores, pessoas e histórias. Sim Mauro, viajar com vc é se passar a limpo. Obrigada por mais um mimo.
Muitíssimo obrigado pelo elogio, dos mais bonitos que já tive.
Tudo certo. A paquera, a investida, o beijo, mas pelo jeito acabou….
Gostaria de entender, como uma pessoa, e o teu caso não é o primeiro que tenho conhecimento, consegue separar-se e continuar morando na mesma casa.
O sentimento de traição que sentisses foi em relação a ter aprendido sobre música com tua ex e estar usando esse conhecimento com está até então um pequeno flerte? Aprendizagem, conhecimento adquirido, não importa a origem, colocamos em prática qdo necessário. E se eu tivesse mais intimidade com vc, diria que até sexo aprendemos na prática com alguém. Nem por nós sentimos traidores qdo usamos esta aprendizagem com outra pessoa. Risos.
Obrigado pela sinceridade e por ser direta, me deixa a vontade. Fiquei sob o mesmo teto por não ter como financeiramente resolver a questão, quando pudemos, resolvemos. Realmente acabou. Quanto ao que senti pode ser por nunca ter me imaginado naquela situação.
Sempre bom poder trocar idéias assim. Obrigado.