O labirinto da saudade

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Por Mauro Giorgi

Saudade. O dicionário define como “sentimento evocatório, provocado pela lembrança de algo bom vivido ou pela ausência de pessoas queridas ou de coisas estimadas”. Certa vez, um cientista me explicou de outra forma. Segundo ele, nosso cérebro constrói a realidade, nosso mundo, a partir de referências. Algumas delas são tão sutis, que às vezes nem nos damos conta, como o cheiro de café e pão quente pela manhã. Outras mais óbvias como tudo e todos que amamos. Quando retiradas tais referências, o cérebro acuado se desorienta, procura incessantemente o que falta e que não é possível reencontrar no tempo, na distância ou nos dois. É a dor de estar longe de casa, de perder um país. É a dor de estar longe dos entes amados. Segundo o cientista, essa dor também é fruto de um esforço tremendo que fazemos para reconstruir nosso mundo com outras coordenadas.

Poetas se excedem para falar do sentimento. Chico Buarque de Hollanda, por exemplo, escreveu que “a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada do membro que já perdi”. Dizem que todo um gênero musical brotou dela: o fado português teria sido criado por viajantes nostálgicos. Acredito que uma das representações mais poderosas na saudade se encontra no chamado Jardim do Exílio, no Museu de História Judaica em Berlim. Num quadrado estão dispostos com intervalos regulares pilares de pedra. Tudo aparentemente simétrico e organizado. Porém o solo é irregular. Há desníveis inesperados. É como andar num navio: cada passo precisa ser cuidadosamente calculado. O olhar engana. O chão escapa. Não existe segurança.

O Jardim do Exílio, em Berlim. Um labirinto onde cada passo precisa ser cuidadosamente estudado.

Sentimos saudade do que está aqui e já não é mais igual. Minhas crianças, hoje adultas, em dia de loja de bala, sem saber o que escolher. O café da manhã com bigodes de leite, a viagem até a escola enquanto a caçula checava o conteúdo do lanche.

A casa tranquila nos domingos de inverno, bem cedo, hora de leitura de jornais e de tomar chocolate quente.

A companhia de um animalzinho amado, sempre pronto para fazer da vida uma festa, principalmente se o programa envolvia comida.

As ligações para os pais, para ter notícia de tudo e de todos. Ainda posso ouvir a alegria na voz da minha mãe ao falar comigo.

Saudade do ir dormir sem nenhuma preocupação

Saudade de ser acordado com alguém pedindo leite e pão com requeijão.

Saudade de amarrar o microtênis.

Saudade do resto do vinho na garrafa que ela escolheu.

Saudade do último livro que nunca será o último.

Saudade da última dança que foi a última.

Naquela música, Chico dizia também “Que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”.

Quem já viveu um pouco sabe que é impossível não frequentar esse cais e observar as embarcações. Aquelas que chegam jamais substituirão as que partiram. Por mais desconcertante que seja esse movimento, existe sempre a possibilidade de que o novo desembarque com as promessas e o vigor de um recomeço.

 

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9 comentários

  • Cátia disse:

    O texto é realmente interessante, só faltou referenciar Eduardo Lourenço, crítico literário português autor do livro O Labirinto da Saudade.

  • andrea disse:

    vi o a pagina com o assunto saudade nao sei mais viver porque eu so vivo de saudade nao sei como mais tirar isso da minha vida ta me matando dia dia

  • Noel disse:

    Excelente texto que fala não só da saudade romântica, mas também da saudade da família e da infância. Salva de palmas pra vocês .

  • Sigo o site ,e esse testo tem tudo haver ,nunca passei por uma situação na qual estou de alguns tempos pra cá. Apesar de ter problemas conjugal sempre consegui contornar ,ate que alguém me fez a ntir viva de volta a vida.Só que a pessoa não se expõe dei motivos pra que ele se enteresasse porém não sei como tomar decisões nem converssar .Não vou me expor se a pessoa não me procurar e nã se indentifoicar .

  • Mariane Almeida disse:

    Amo Chico e amo especialmente esta música. E agora amo vc que me trás lembranças desse amor e de todos os outros guardados no coração. Amo sua escrita e sensibilidade. Amo sua ousadia em invadir os recônditos mais secretos e fazer com que façamos faxinas. Faxinas boas, apenas para colocar em lugar de destaque uma lâmpada que estava sem azeite. Parabenizá-lo já é lugar comum. Apenas agradeço.

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