– Que diabos é essa estrutura redonda aqui embaixo?
– Acho que é uma arena de touradas.
– Arena? No Rio? Você está maluca? Deve ser o estádio do Fluminense.
– Aposto que é uma arena. Havia uma em Laranjeiras. Tenho certeza disso! E estádio do Fluminense só por volta de 1919.
Estávamos os dois embasbacados diante de uma visão panorâmica do Rio de Janeiro do tempo do onça. (É, coisa tão antiga que merece mesmo uma expressão tão fora de uso quanto essa). Hipnotizados, eu e Mauro, coautor deste blog. E era apenas a entrada da exposição Primeiras poses, atualmente em cartaz no Instituto Moreira Salles, na Gávea. O painel gigante ocupa uma parede inteira e suas dimensões generosas permitem que os visitantes passeiem pelos contornos conhecidos da cidade (o vídeo abaixo mostra a imagem). Um Corcovado sem estátua. Um Pão de Açúcar sem bondinho e sem Urca. Uma longa avenida de palmeiras imperiais com um palácio de linhas austeras – a rua Pinheiro Machado. Meus olhos esquadrinhavam a imagem como se lessem um livro, como se ela pudesse me responder perguntas mentais que eu me fazia. Bom, o palácio ainda conservava o jeitão neoclássico, muito diferente do estilo bolo de noiva eclético que conhecemos hoje em dia. Portanto, imaginei, a foto deveria ser da primeira década do século XX ou antes. Se a memória não me falha, a estrutura foi reformada naqueles anos para receber um rei belga que acabou furando a visita.
(Não, leitor, não fui vítima de alguma overdose de Radio Relógio e seu “Você sabia?”. É que em uma encarnação recente costumava escrever sobre exposições para uma revista de circulação semanal e fotografia histórica era meu fraco.)
Descobri depois que aquela imagem espetacular era obra do fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923), autor de alguns dos mais preciosos registros da cidade no século XIX. Trata-se, na verdade, da junção de três negativos de vidros, ou seja, três fotos diferentes que se completam. Em tempos de pixels e megazooms, é incrível imaginar que aquelas chapas de 1895 seriam capazes de render tamanha ampliação e com tal qualidade.
Na verdade, tudo o que escrevi até agora tem como objetivo tirar você, leitor, da cadeira, e ir direto ao Instituto Moreira Salles, caso resida no Rio. A foto de Ferrez é apenas um aperitivo. A exposição traz 450 imagens da cidade, produzidas entre 1840 e 1930, distribuídas em ordem cronológica por seis ambientes. Tudo parte do incrível acervo fotográfico do Instituto. Além de Ferrez, é possível se regalar com trabalhos de pioneiros como Auguste Stahl, Revert Klumb, Georges Leuzinger (adoro suas panorâmicas) e Augusto Malta. Sem dúvida um dos destaques do percurso é a galeria reservada ao Álbum da Avenida Central, com seu traçado, lotes e seus proprietários, plantas e fotos das construções novinhas em folha. É um exercício de imaginação enxergar na avenida Rio Branco os traços daquela obra orgulhosamente inaugurada pelo prefeito Pereira Passos em 1905. Pouquíssimas estruturas sobreviveram à passagem do século. As fotos mostram o derrubado morro do Castelo bem pertinho da avenida, com a encosta coberta por lençóis e roupas estiradas para quarar.
O progresso clamou o morro em 1922 e levou um bonde solitário a varar o areal de Copacabana na via que viria a ser conhecida como rua Barata Ribeiro. Eliminou a igrejinha construída sobre a pedra, no Posto 6, e a modesta colônia de pescadores. (Na foto de Ferrez, de 1895, dá para ver galinhas andando na areia). Trouxe mais higiene e luz elétrica, como registrou Malta. Exigiu espaço e aterros na Baía de Guanabara. A natureza às vezes se revoltava, como mostram as fotos das ressacas na avenida Beira Mar, nos tempos em que realmente ficava na beira do mar. Tudo isso está em exposição. Particularmente caro ao meu coração é o segmento devotado aos primórdios de Ipanema, quando o bairro era apenas um areal e se erguia solitária a residência de um comerciante que gostava de fotografia. A casa ficava onde se encontra o Colégio São Paulo, na avenida Vieira Souto. Para quem nasceu e cresceu nessa quadra, tentar fazer uma correspondência entre passado e presente é uma experiência atordoante. (por Livia de Almeida)
A essa altura, acredito que até os leitores de fora da cidade já estejam um pouquinho curiosos. Então seguem duas boas notícias. A primeira é que a mostra fica em cartaz na antiga moradia do embaixador Walther Moreira Salles até 31 de dezembro, ou seja, há tempo de sobra para ver e rever várias vezes. Pode acreditar, o conjunto merece visitas repetidas. A outra boa notícia é que a entrada é franca, como acontece nas exposições do centro cultural. A casa é linda, uma joia modernista adornada por jardins e azulejos de Burle Marx.
Tenho uma única reclamação a fazer. E é coisa séria! Uma exposição como Primeiras poses merecia um belo de um catálogo.
Ah, mais uma coisa. Sabe aquela tal estrutura circular que eu e o Mauro discutimos no início deste texto? Pois é. Era mesmo uma arena de touradas que existia em Laranjeiras, mais ou menos onde hoje em dia fica o mercadinho São José. Eu estava certa! Descobrimos também que as touradas foram banidas em 1907 pelo prefeito Souza Aguiar. Afinal de contas, a selvageria não devia combinar muito bem com o projeto de cidade moderna que emergia então.