A alegria tem quatro patas

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Na casa da minha avó, sempre teve cachorro. O mais famoso da família eu não cheguei a conhecer. Chamava-se Burcardo, um fox paulistinha que vivia atrás do meu avô.  Depois teve uma miniatura pincher que era da minha avó, por quem que eu não nutria qualquer simpatia. O coitadinho era frágil e doente e me lembro dele deitado em uma almofada, tomando banho de luz infravermelha. Depois que ele se foi, ficaram algum tempo sem nenhum bicho de estimação. Minha avó não queria mais sofrer, num misto de fado português com ópera italiana.

Um dia, um amigo da Urca apareceu com um vira-lata branco com uma mancha preta no lado da barriga e na base do rabo, uma mistura de fox paulistinha. O nome escolhido foi Tompi. Mais tarde meu tio acrescentou José, não sei bem por que.

Era terrível: mordia calcanhares, rasgava meias, era tempermental, mas adorava jogar bola e isso era comigo mesmo. Ele não ficava em casa todo o tempo. À tarde, a empregada o soltava e ele saía pelo bairro onde todos o  conheciam. De noite ele voltava para casa e passava pelos “buracos” do portão de ferro da casa. Acontece que o hoje badalado Bar Urca já foi um pé sujo incrível, onde os motoristas dos pontos finais tomavam cachaça e sempre jogavam alguma para o santo. Tompi lambia o chão. Batata. Quando estava perto de completar uns dez anos apareceu com uma tosse terrível e não conseguia mais sair de casa. O diagnóstico? Cirrose.

Na minha casa, nunca tivemos cachorro, mas todo mundo gostava. Quando tinha chance, brincava com o dos meus amigos. Bem mais tarde, descobri que minha mulher não só detestava cachorro, como também tinha medo e transmitiu pelo menos parte desse medo para nossa filha mais velha. Era preciso acabar com aquela fobia, pois a pequena atravessava a rua sem olhar, chorava de pânico, coisas que extrapolavam o medo provocado por  um bicho.

Aí Cindy apareceu nas nossas vidas.

Uma Yorkshire dada de presente pela madrinha da minha filha. Mínima, linda, e quieta.

Apesar de todas as ameaças que fiz a respeito de quem iria cuidar, passear e ser dona do cachorro, a caçula e eu nos tornamos seus responsáveis. A mais velha perdeu o medo, mas não era de dar tanta atenção. Minha mulher achava que a bichinha tinha que sentar a mesa e comer de garfo e faca e saber se servir à francesa. Logo as duas não se bicavam muito.

Em compensação, a caçula e eu nos divertíamos. Jogávamos bola, passeávamos, levávamos ao veterinário, de vez em quando davamos banho em casa. Curtíamos demais a Cindy.

Ela tinha as suas manias e gostos. Gostava de um canto exato da minha cama e ficava lá durante horas enquanto eu fazia relatórios no computador. Dormia sobre a mochila da caçula enquanto ela fingia que estudava, e tinha um gosto bom para comida. Além da ração de todos os dias, adorava peito de peru, uva, pedacinhos de miolo de pão com manteiga e, principalmente, chocotone, aquele panetone com pedacinhos de chocolate. Tivemos um episódio ótimo: tinha uma amiga das meninas dormindo lá em casa. Quando acordaram, Cindy ficou, como sempre, na farra das migalhas em torno da mesa do café. Quando terminaram, coloquei um DVD para as meninas se ocuparem enquanto eu arrumava a mesa. Ao me virar, encontrei aquele tico de cachorro em cima da mesa, mergulhada toda no chocotone. Ao ouvir a bronca, ela pulou do alto da mesa. Em seguida, foi a hora da gargalhada geral, e por fim, do banho, para tirar todo o chocolate preso nos pelos.

À medida que a situação da casa se deteriorava com a iminência da separação, problemas financeiros e de astral ruim, ela foi ficando mais apegada a mim, e também mais triste. O veterinário me alertou que os cães às vezes pressentem situações. Não acreditei, e fiquei com a impressão que ela só se alegrava comigo.

Uma tarde minha filha mais velha ligou chorando que ela andava pela casa como se não conseguisse enxergar. As duas horas seguintes, passadas ao telefone com o veterinário e minha filha, foram de sofrimento intenso e profundo.

Chorei sua perda por mais de quinze dias e devo confessar que volto a chorar ao escrever. Mas jamais poderia deixar de homenagear aquela criatura querida, que me alegrou e me acompanhou por dez anos. Te amo Cindy.

Cindy

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