O futuro mais que perfeito

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quebra-cabeça casal

A escada era larga, com degraus altos e estreitos de pedra escura. Ligava a ladeira do bairro às demais ruas, espremidas entre o mar e a pedra. Era ali que eles se sentavam quase todos os dias para namorar e ver o pôr-do-sol. Quando chegavam por lá e já havia outro casal, eles se resignavam e procuravam outro belvedere.

Aquela escada escutou todos os planos dos adolescentes. Estavam convencidos de que aquele seria o único amor de cada um. Já sabiam tudo o que aconteceria até ficarem velhinhos, ali perto dos cinquenta anos, quando imaginavam ver os netos correndo pela casa. Aos dezesseis anos, mais ou menos, os dois já haviam decidido suas vidas profissionais. Ele seria médico; ela, arquiteta. Morariam no bairro em que nasceram e cresceram. Seus filhos seriam criados do mesmo jeito, brincando na rua, mas ao contrário deles, não estudariam em colégios religiosos. Isso eles decidiriam depois.

Os planos para o futuro eram traçados e aprimorados diariamente, entre beijos, abraços e juras eternas de amor, companheirismo e cumplicidade. Todos os detalhes eram debatidos. Às vezes, ele tentava falar da lua-de-mel. Onde seria e o que poderia acontecer. A educação mais rígida dela a fazia corar e mudar de assunto,  questionar se morariam numa casa ou num apartamento. Ele entendia, controlava os ímpetos e voltava a embarcar na viagem diária pelo futuro inteiramente projetado.

Durante o dia, quando ocorria a um dos dois um detalhe ainda não dito, aumentava a ansiedade pelo passeio diário pela expectativa de conversar. Faziam isso com ar de grande importância, brincando de adivinhação um com o outro para valorizar o clima. Cada novo elemento incluído naquele roteiro do futuro era comemorado. Servia de pretexto para rememorarem todo o planejamento.

Nada resiste ao imponderável. Ao acaso. À vida. Ao tempo.

A escada continua lá, cenário para centenas de histórias de amor esquecidas. Tantos anos depois, décadas mesmo, ele observa a estrutura de pedra quando visita o bairro onde já não mora. Sorri diante das lembranças. Imagina como teria sido aquele futuro antecipado. Não faz ideia de que a escada é o caminho diário para ela, que voltou a morar no bairro. Faz parte do trajeto entre o ponto de ônibus e sua casa. Subir e descer tantos degraus todos os dias já cansa. Afinal ela está com aquela idade em que costumava se imaginar velha e rodeada de netos. Ri dessa ideia, mas prefere não se lembrar do resto. A vida tinha sido dura. Sonhava em planejar de novo um futuro distante, que parecesse perfeito nos últimos detalhes.

O acaso não cooperou. Nunca mais se encontraram. Quando sobe os degraus, ela sempre se pergunta: O que poderia ter sido? Quando ele deixa o bairro rumo a outro ponto da cidade, mesmo sem gostar de olhar para trás, ele sempre pensa: E se eu a encontrasse agora? Perguntas sem resposta. Mesmo depois de tanto tempo nenhum dos dois aprendeu nada sobre o imponderável.

 

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