Copa em família

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Minha Copa IV

Minha primeira e mais importante lembrança de uma Copa é a de 1970. Tinha onze anos e acabara de voltar dos Estados Unidos. A grande novidade era que os jogos seriam transmitidos ao vivo pela televisão! Na época, o apartamento comprado pelos meus pais passava por reformas. Morávamos provisoriamente na casa de meus avós maternos e ali era o ponto de encontro de toda a família.

No quarto da minha avó, um televisor Zenith ocupava lugar de honra, cuidado a pão-de-ló por meu avô, que supervisionava o técnico e suas válvulas. Seu Domingos já era considerado um membro da família. Para mim, o quarto parecia imenso e devia ser mesmo, porque era lá que todo mundo assistia aos jogos, algo como oito a doze espectadores por partida. Tudo se desenrolava em função dos jogos. Como os horários dos jogos eram próximos ao jantar nos dias úteis e ao almoço, nos finais de semana, o cardápio típico de uma família italiana era farto e adaptado, comida que se podia pegar na cozinha e levar para nosso “estádio”.

A superstição nacional pegou por lá também logo após a vitória no primeiro jogo. Todo mundo tinha que usar a mesma roupa e ocupar exatamente os mesmos lugares. Assim, as roupas eram lavadas no dia seguinte à partida para estarem a postos para a seguinte. Como o primeiro jogo caiu em dia de semana e eu assisti com a camisa do São Bento, até no domingo lá estava eu de uniforme. Depois, usava a do Fluminense. Aqui me permito um pouco de saudosismo: naquele tempo ela não exibia nenhuma logomarca de patrocinador; só havia o escudo sobre o coração!

Nas primeiras rodadas havia algum nervosismo. Eu esperava ávido pelos comentários dos mais velhos. Meu avô levantava as mãos para os céus em êxtase a cada lance feito por Gerson e Pelé, enquanto meu pai admirava a genialidade do Tostão a jogar sem bola e a onipresença em campo de Clodoaldo. Mas a unanimidade era Rivelino: pelos chutes poderosos, pelo mau humor típico dos italianos e pelos dribles em mínimo espaço. Nesse momento, a minha única e orgulhosíssima intervenção:

Pappa! Nonno! Ele jogava futebol de salão. É o que nós jogamos no colégio!

Os dois sorriam e eu me achava o João Saldanha!

A partir das quartas-de-final, quando enfrentamos o Peru, e todos ficaram tristes pelo Didi, treinador daquele time, nós começamos a sair para comemorar na rua. Íamos com o Itamaraty dourado do nonno e uma imensa bandeira verde-amarela costurada pela minha avó, feita com tecido comprado no Largo da Carioca por meu avô.

Depois desse jogo, houve um silencio respeitoso e até certo medo: o Brasil jogaria com o Uruguai. Até meu tio que nunca tinha jogado futebol na vida tinha o trauma de 1950. Reza a lenda familiar que naquele fatídico 14 de julho meus pais, que namoraram seis anos não se viram. Teria sido o único dia em que meu pai não vira minha mãe durante o namoro. Enfim, até eu que não tinha passado por tal trauma comecei a ficar com medo do jogo.

Chegado o dia, a concentração em casa era imensa. Conversava-se em voz baixa. Por precaução, minha mãe pedia calma a meu avô, enquanto minha avó estava ligada no jantar a ser servido rapidamente para que todos ficassem prontos. Após o primeiro tempo muito tenso, houve um segundo tempo de redenção total. Meu pai com lágrimas nos olhos, meu avô a enaltecer o “rei” e eu vibrando com o terceiro gol do Rivelino. Mais uma comemoração inesquecível. Estávamos prontos para enfrentar a Itália.

Naquela família italiana, ninguém tinha qualquer hesitação em escolher por quem torcer. O sentimento de amor pela seleção brasileira era imenso. A propaganda política em torno do time não passava na cabeça do torcedor. Ali todos estavam vibrando. A final trouxe uma euforia enorme, o capeletti não combinava com o frango xadrez que minha mãe tinha aprendido a fazer, mas ninguém se importava. Todos comiam o que havia pela frente. Depois que o jogo acabou, saímos à rua mais uma vez a bordo do Itamaraty, exibindo a bandeira.

Para mim, nunca mais houve uma Copa igual a essa – e olha que desde então já assisti a outras dez. Nada pode se comparar àquela oportunidade de compartilhar uma alegria tão grande com toda a família.

 

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Sem comentários

  • Lembrei-me do meu nonno lendo isto. Ele, tipicamente italiano também, me contava inúmeras historias das copas. Do time da qual torcia, o Torino e as historias do Corinthians Paulista lá nos primórdios. Nostalgico este post!

  • Mariane Almeida disse:

    Lindo. Família e futebol era um tributo à união. Vivi tbm lindos momentos como esse com a minha. Meu pai esbravejava a cada erro e gritava, pulava, virava criança a cada gol. Inesquecível mesmo amigo. Quase chorei lendo seu relato, tbm eu sou uma torneira abertakkkkkkk

  • maurogiorgi01 disse:

    Republicou isso em Tudo Sobre Tudoe comentado:

    Neste domingo, completam-se 45 anos da conquista da Taça Jules Rimet, o inesquecível tricampeonato do Brasil na Copa do Mundo de 1970. A primeira Copa transmitida ao vivo por televisão marcou uma geração inteira de torcedores.

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