As aparências enganam

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Sempre chegava antes de todos. Lia os jornais, marcava notícias para cada um dos funcionários, conforme o que cada um fazia. Um chefe desses era dificil de achar.

Vestia-se de forma impecável. A altura (perto de 1,80 m) e a magreza ajudavam a garantir a elegância. Apostava sempre no clássico: ternos, sapatos, gravatas, camisas. Com certeza, devia ter alguém em casa que cuidava bem das roupas dele.

Não era uma pessoa com grande cultura, mas graduara-se pela USP,  um economista de talento dentro do vazio do mercado financeiro cheio de meninos pendurados em seus minicomputadores.

Sabia conversar com os clientes como poucos. Conhecia todos os restaurantes e as bebidas do mundo. Almoçar com ele era uma aula. Chegou a ter um bar, mas. o negócio não deu muito certo Era um belo, daqueles com piano, boa bebida e comidinhas perfeitas.

Cabelo curto, de um castanho quase ruivo, um bigode a la Rivelino que recebia cuidados especiais, tinha um sotaque ítalo-paulistano da Mooca. Torcedor do Palestra, como ele chamava, conhecia muito de futebol e dizia que tinha jogado bastante quando moleque.

— Ô Italiano (era como me chamava), viu o balanço da Metal Leve, que puta margem de lucro! Papel vai dar porrrrada – dizia, exagerando no r de locutor de futebol.

Todo mundo admirava. Chefe justo nos elogios e na distribuição de lucros, aumento de salários, e complicado na hora de chamar a atenção — nada de aliviar. Enfim, sabia como poucos formar e manter uma equipe unida.

— Ô Marcio, desce no Godinho e diz pro Alfredo que eu quero 300 gramas de copa, com gordura no meio. Entendeu, ô canhoto? Traz dois pães, um pedaço de queijo minas curado e um iogurte natural, que eu vou comer no escritório.

A admiração era geral, as moças do banco diziam que não tinha quarentão como ele.

Um dia, véspera de feriado prolongado, a esposa veio buscá-lo com as filhas para uma viagem. Aí a fama correu mundos e fundos. A mulher era alta, loura olhos azuis, chique, arrumada e simpática. As filhas, duas bonecas tímidas, e educadas.

Essa visita rápida foi assunto por algumas semanas na famosa Rádio Corredor.

Alguns se perguntavam:

— O que falta para ele ser vice-presidente? Já é diretor há quatro anos, já provou tudo que poderia ser provado… o que falta?

Essa dúvida começava a percorrer a cabeça de uns poucos mais observadores. Eu era um gerente novinho e quando essa conversa começava, eu me retirava. Os lucros cresciam, cada vez mais clientes satisfeitos, todo mundo com bônus altos. Que peça faltava no encaixe?

Aquele profissional seria cobiçado por qualquer instituição financeira.

Um dia de cada vez é um ditado antigo, mas às vezes se aplica perfeitamente nas situações reais.

Como toda história muito perfeita, os detalhes  vão fazendo toda a diferença. De repente, o bom humor já não era todos os dias. Algumas broncas foram no tempo e no local errados. Começou a se ausentar  nas reuniões de diretoria. Passou a dispor de, pouco tempo para os gerentes.

— Porra, todo dia tem que dizer que não quero os relatórios com esse cabeçalho!!

E tome bronca em todo mundo.

Aos poucos, comecei a ser chamado com frequência cada vez maior para as reuniões de diretoria. Eu me sentia perdido e um dia pedi para falar com o presidente.

— A farsa da vida perfeita foi desvendada. A situação pessoal é insustentável. Cuidado para não entrar em conflito – me avisaram.

Nas semanas seguintes, o chefe chegou a aparecer até com alguns ferimentos e dando as desculpas mais esquisitas.

Em uma ensolarada e quente quarta-feira de primavera, cheguei ao trabalho e vi a sala do chefe vazia, sem papéis, sem absolutamente nenhum vestígio de que havia uma pessoa ali menos de 24 horas atrás.

O mistério nunca foi devidamente esclarecido. Perdi um dos melhores chefes que tive.

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Sem comentários

  • Oscar Rodriguez Barreneche disse:

    Mauro, continue escrevendo … Sou seu leitor frequente, e aprecio muito não só o conteúdo mas também a forma com a qual você escreve. Me preocupam as críticas, sejam elas “construtivas” ou não, de quem se esconde no anonimato. Minha recomendação: se o crítico não tem a coragem de mostrar quem é, ignore-o, ou como se dizia coloquial e vulgarmente no Rio há 20 anos, “cague e ande”.

  • naomeadapte disse:

    Sr. Mauro,

    Exatamente, deve dar crédito na melhora da sua redação a quem incentiva, corrige, indaga e também a quem discorda e por discordar julga. Julgar não é acusar é sim formar uma opinião.
    Discordo novamente quando diz que sempre foi melhor com números. É sim bom com números, mas é certamente (ou se tornou ou está se tornando) melhor com as palavras.
    Quanto à qualidade da sua redação em comparação aos seus “pares” era incomparável, tanto escrita como falada, e isso concordamos.
    Como disse só orações não resolvem…acalmar não é resolver.
    Quanto ser ou não ser ficção concordo que você tem o direito de reservar-se, mas de qualquer forma é muito bom o jeito que conduz as narrativas.
    E, infelizmente, eu sei o que é a desesperança…já provei desse remédio amargo.
    Creia, não são elogios irônicos. São apenas formas de dizer:
    – Cara como você sendo uma cara especial, acima da média dos seus “pares” (vixê vai ele achar novamente que é ironia) não fez isso (escrever) antes?
    Escreva…mas escreva sem querer agradar aos outros, até porque você mesmo sabe, não temos amigos, inclusive esse que desperdiça o seu tempo.

    • maurogiorgi01 disse:

      Discordar é sinal de opinião e não necessariamente julgamento. É sempre bom saber que se pode discordar. Houve época que isso era difícil e incomodo. Vou acreditar nos elogios, são raros. Acredito que não estou agradando ou desagradando, escrevo porque quero e gosto.

  • naomeadapte disse:

    Prezado Sr.Mauro,
    Foi com muita alegria e ao mesmo tempo consternação que descobri que o senhor está escrevendo, ou melhor voltou a escrever, pois o acompanhava em um outro blog.
    Fiquei muito feliz porque vi que, aparentemente, o senhor está (ao poucos) se recuperando do baque causado pela falta de uma colocação no mercado de trabalho. Sim, acompanhei bem de perto a sua procura e também as decepções que teve com muitas negativas.
    Fiquei consternado porque (antes de ler parte do conteúdo) achava que o senhor deveria ter avisado os “amigos” que estava escrevendo. Mas no post “Não vou me adaptar”, o senhor fala muito bem que não tinha amigos. Tomo a liberdade de transcrevo as vossas linhas (na verdade copiar-colar): “Descobri naquele momento que tinha vivido num mundo de aparências que só festeja os vencedores e é implacável com os chamados perdedores.”
    Acho que não teria forma melhor de explicar como o mercado de trabalho e sociedade tratam os que não têm colocação. É aquela história: Uma coisa é procurar trabalho trabalhando e a outra é procurar trabalho estando desempregado.
    Por isso, não vou me chatear pela sua não comunicação, pois na verdade vi que muito pouco fiz para mudar a sua condição, já que oração e desejo nem sempre são suficientes.
    Não sei o que tem feito, mas a sua redação melhorou muito. Está mais hábil para trabalhar as palavras, sentidos e lógica, sem pecar no “português”. Ficando fácil e gostosa a leitura. Confesso que prefiro quando você conta seus “causos”. Seria ficção? Já tinha ouvido alguns.
    Para terminar quero desejar-lhe o melhor das coisas…Quem sabe não está aí o que você tanto procurava? Escreva….

    PS. e-mail e nome não são do seu amigo.

    • maurogiorgi01 disse:

      Devo dar todos os créditos da minha melhora na escrita a quem me incentiva, corrige, propõe, indaga, e não julga. Sem dúvida sempre fui melhor com números do que com palavras, e sei bem que apesar do “português” nesse quesito sempre fui melhor que a grande maioria dos meus pares. Desejos e orações são sempre muito importantes, também os tenho e também as faço, mas só servem para acalmar e não para resolver. Quanto ao que é ficção, realidade, sonho, tentação ou vontade, fica reservado a quem escreve o que é ou não. Ninguém é capaz de saber o que é desesperança ou desespero sem ter passado por ele, assim também me reservo o direito de ter uma opinião, e jamais julgar. Cada um sabe de seus problemas e alegrias e ninguém tem direito de questionar.
      Obrigado pelos elogios que ainda não entendi se irônicos ou não. Sempre fui meio “burrinho”.

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