Cara e coroa

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Chamá-la de rainha do lar seria menosprezá-la. Apesar de ser de poucas palavras – pouquíssimas mesmo – todo mundo sabia perfeitamente quem dava as ordens no pedaço. Não se abria a boca em qualquer ambiente sem o seu consentimento. Pose não lhe faltava. Décadas e décadas de postura ereta, rosto impassível. Uma dedicada mãe de família. Uma avó. Uma bisavó de passo firme. O esteio da família. Aquela que dominava todos os detalhes do protocolo exigido para qualquer situação de emergência, do talho no dedo à calamidade pública, das guerras mundiais às conjugais, das crises nucleares e familiares. Uma mulher que sabia se comportar em público sem dar vexame, mantendo o comprimento das saias rigorosamente na altura dos joelhos, com pesinhos aplicados nas barras para permanecer à prova da indiscrição de qualquer ventania. O que pensava? Quase ninguém sabia.

Devia ser um bocado solitária aquela rotina, entrava ano, saía ano, de mudar de casa enorme para outra casa enorme, dependendo da estação. Devia haver um bocado de tédio em toda aquela repetição, como se as mudanças do tempo tivessem sido congeladas por decreto. Bom, isso nem mesmo ela podia. E foram anos demais entrando e saindo. Lá fora, impérios se ergueram e desmoronaram. As modas mudaram: as saias rodadas do New Look de Dior viraram minissaias de Mary Quant e depois os trapos ardilosamente armados por dame Vivianne Westwood.  Mudaram os costumes. Pílulas anticoncepcionais, bebês de proveta, ovelha Dolly, viagens à lua, telefones celulares, microcomputadores. Beatles, Rolling Stones, The Clash, Sting, Coldplay, Amy Winehouse. Explosões do rock, explosões de bombas, atentados, Sunday Bloody Sunday. E os casamentos deixaram de ser eternos como num conto de fadas. E os filhos, como sempre, uma dor-de-cabeça. Como filhos costumam fazer, andaram com gente errada, amaram errado, disseram a coisa errada, foram flagrados no momento errado.

Paciência.

Ela havia feito escolhas conscientes. E no dia em que se transformasse em apenas mais um retrato na parede seria lembrada por elas, e não pelos momentos em que secretamente duvidou, temeu e hesitou.

 

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