Redes sociais: não sou obrigado

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Em tempos distantes – no século XX, eu diria – existia a figura mítica do artista recluso. Era aquele ser arredio que vivia no meio do mato, não atendia telefone, não respondia cartas, comunicava-se exclusivamente através de um ou outro eleito. Caso fosse abençoado pela fama, podia até sofrer periodicamente assédio da imprensa. Seus esporádicos flagrantes eram comemorados pelos jornalistas como se fossem registros da aparição do monstro de Loch Ness. A atriz Greta Garbo (“I want to be alone”) e o escritor J.D. Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio, são os exemplos que vêm mais depressa à lembrança. Durante uma conversa recente com um amigo escritor, chegamos a uma estranha conclusão. Nos dias que correm, basta não pertencer a nenhuma rede social, em especial o Facebook, para ganhar a aura de inacessível, eremita ou equivalente, não importando mesmo que a pessoa em questão tenha o número na lista telefônica, endereço conhecido e possa ser contatada por outros expedientes.

Os perfis nas redes sociais assumiram o papel de uma espécie de posto avançado da identidade pessoal e profissional de seus usuários. A presença virtual cria uma falsa sensação de proximidade, um sentimento de que é possível criar uma comunicação com qualquer um. Digo “falsa sensação” porque obviamente existe muita gente que cria um perfil, checa as atualizações bissextamente e nem se dá ao trabalho de mudar sua foto de tempos em tempos. Sim, existem pessoas que, com toda honestidade, não tem nem gosto nem disposição para se dar ao trabalho de visitar o Facebook todos os dias. Por outro lado, também existe o oposto: o cidadão que tem horror a se expor numa rede social por temer um possível assédio, mas ao mesmo tempo morre de curiosidade de saber o que se comenta por aí. Esses têm a opção cambeta do perfil falso. Acho que o mais frequente, nesses casos, é “filarem” o acesso pela conta de parceiros ou familiares.

Estar ou não estar na rede, portanto, funciona como uma espécie de declaração de princípios e já cria alguns pressupostos para definir personalidades. Como o virtual acaba se transformando num pedaço inalienável da nossa identidade, é natural que o ego se sinta afagado quando o que publicamos rende muitas curtidas e elogios. Ou que um comentário agressivo, mesmo vindo de um quase desconhecido, seja o bastante para azedar o dia. Quem anda pelas redes durante jogos de futebol e na campanha eleitoral com certeza testemunhou rompimentos rumorosos entre (até então) amigos, parentes e vizinhos. Tudo isso pode levar à afronta suprema, a desfeita máxima da vida social contemporânea: o bloqueio. Serve para desafetos, desamores e stalkers em geral. Basta um clique do mouse que, ao contrário do mundo real, para que a criatura desprezível desapareça para sempre e que nunca mais você possa ser visto por ela. Anulam-se duas existências. Acho que é a tradução mais literal e atualizada do melodramático: “Você morreu pra mim.”

Nem sempre nós, usuários, temos plena noção do quanto pode ser apreendido ou concluído sobre nossas vidas e manias a partir de inocentes publicações. Tenho para mim que um dos equívocos mais comuns é dizer para si mesmo (ou para os amigos): “Uso meu perfil exclusivamente para fins pessoais/profissionais.” Alto lá, cara pálida. Hoje em dia, é muito difícil manter as coisas em compartimentos rigorosamente lacrados. Todo mundo conhece uma história como a da recomendadíssima candidata a uma vaga num escritório de direito que quase perdeu o emprego pois seu recrutador resolveu checar o Facebook (“de uso exclusivamente pessoal”) e encontrou apenas registros animados de baladas e fins de semana na praia. Ou ainda do colega que decidiu fazer um comentário sarcástico em uma discussão e, mal compreendido, foi praticamente linchado por ser “preconceituoso”. A prudência diria que o comportamento-padrão a ser adotado na rede talvez fosse o mesmo destinado a festinhas onde você só conhece (vagamente) o dono da casa: afável, mas sem grandes intimidades, porque afinal de contas talvez os desconhecidos estranhem seu agudo senso de ironia e interpretem mal suas tiradas espirituosas. O que se escreve por aqui, sabe lá onde vai parar. Pode tanto te dar ares de um sujeito descolado e de bem com a vida, ou acabar num departamento de RH. Como em qualquer ambiente público, todo o cuidado é pouco. O que se faz no mundo virtual tem consequências concretas na chamada “vida real”. Ser recluso atualmente é um privilégio de poucos. (Por Livia de Almeida)

Para xará e CB

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