Tudo por um celular

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Encontrei!

Cena 1: capotagem de carro, captada pelas câmeras da rodovia. Com dificuldade, a motorista consegue sair das ferragens. Vaza óleo. Aparentemente, há risco de explosão. Inexplicavelmente, ela volta ao interior do carro. Só depois de recuperar o telefone celular, ela se afasta o mais rápido possível do local.

Cena 2: uma estação de rádio entrevista moradores de um prédio de São Conrado  abalado por uma explosão de gás na semana passada. Uma jovem conta como, depois de ter sido surpreendida pelo choque, apressou-se em recolher os itens mais importantes antes de descer de roupa de dormir: bolsa, celular e carregador.

Cena 3: uma amiga distraída esquece o celular em um restaurante. Depois de uma autêntica crise de nervos, ela consegue recuperá-lo. Entre trêmula e choramingas, ela o abraça como se tivesse reencontrado um ente querido. É bom ressalvar que entre a perda e o reencontro não se passaram mais do que quarenta minutos. (Nota da editora: trata-se de uma pessoa habitualmente prima pela sensatez, pelo equilíbrio e o bom senso.)

Há pouco tempo, bem pouco tempo, cenas como essas que descrevi aí em cima seriam absolutamente inexplicáveis. Diria que dez anos atrás, a maioria das casas ainda contava com um caderninho preto junto ao telefone (fixo) com os números mais importantes organizados por ordem alfabética. Para resolver os problemas do dia a dia, guardavam-se por perto duas ou três listas telefônicas. Os executivos carregavam agendas com cartões e papéis grampeados e suas secretárias organizavam cartões de visita em álbuns. Num intervalo extremamente curto, tudo isso se tornou obsoleto.

Os aparelhos de telefone celulares se tornaram inicialmente mais compactos e, em seguida, mais espertos, e assumiram o lugar dos caderninhos. Lá está a lista de contatos, agenda, bloco de notas. Uma parte da nossa memória foi liberada da decoreba dos números: ninguém mais se vangloria de saber de cor o telefone de todos os primos. Assim, no terrível evento de separação entre aparelho e usuário, o resultado pode ser uma pessoa incapaz de fazer uma ligação para um dos próprios filhos. (Qual o número mesmo?). Ou pior, inacessível para o mundo, uma vez que só seres jurássicos ainda fazem ligações para aparelhos físicos. (Nota da editora: o autor, quase jurássico mesmo, ignora o fato de que atualmente 90% das comunicações não se dão mais por ligação, mas sim por aplicativos como o WhatsApp. Algum leitor simpático poderia inclusive explicar para ele do que se trata, pois já perdi as esperanças.)

E então, nos últimos anos, além das funções de comunicação mais convencional, os aparelhinhos também ganharam outros usos. Viraram câmeras poderosas e registram os bons momentos da vida e as viagens de férias. Ganharam acesso à internet. É possível tuitar que o trânsito está uma droga, mandar uma imagem do engarrafamento pelo Instagram e curtir uma notícia postada por um amigo no Facebook. (Nota da editora: Nem vamos entrar no mérito de como é prático e agradável assistir aos 13 capítulos de Grace & Frankie pelo Netflix, debaixo de um edredom, com sua telinha privativa O autor ainda está na era da TV a cabo. )

 O resultado disso é que o nível de dependência entre usuário e máquina aumentou de uma forma nunca vista. Já tive a experiência de ter o celular roubado e de perder todos os meus contatos de uma só tacada, antes do advento do chamado armazenamento em nuvem. São dezenas de pessoas com quem não posso me comunicar de novo, a não ser que me procurem por acaso. (Nota da editora: o armazenamento em nuvem também não é nenhuma garantia. Minha filha, com quem eu dividia uma conta, resolveu fazer uma limpa na lista de contatos, crente de que estava apagando apenas os amigos da mãe. Perdi mais de 20 anos de agenda de jornalismo, substituídos por vários números de delivery de fast food.)

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Onde foi parar minha lista de contatos?

Não é preciso um computador para estar conectado com um mundo e se manter em dia com as notícias, por mais bobas e irrelevantes que elas sejam. Checar o email, o Facebook, ou o que mais for, virou praticamente um tique nervoso, praticado sem cerimônia em qualquer evento social. (Nota da editora:  O próprio Facebook informa que 90% dos acessos à fã page de Tudo sobre Tudo se dão via celular ou tablet.)

Aparentemente, aumentaram os casos de insônia provocados pelo uso constante da tela LED. Conheço mais de uma pessoa que admite dormir com o celular na cabeceira, em modo silencioso, e que, ao acordar de madrugada não resiste ao desejo de checar o Facebook ou o Twitter Esse comportamento compulsivo (Nota da editora: mais comum do que gostaríamos de admitir) já foi reconhecido por psicólogos e ganhou um nome: FOMO (Fear of Missing Out), sigla que poderia ser traduzida como medo de ficar de fora. Afinal, o fluxo de informações é contínuo. E durante a madrugada pode acontecer um novo terremoto no Nepal, o ator B pode ser visto com a atriz A aos beijos no Baixo Leblon, ou seu vizinho talvez decida fazer alguma revelação estarrecedora para toda a rede. Nunca se sabe.

Quem inventou as redes sociais é, na verdade, um gênio da psicologia, porque descobriu um jeito aceitável para que todos possam assumir seus lados fofoqueiros ou voyeurísticos sem que isso pegue mal. Não se trata de rabugice minha ou de algum tipo de birra contra os tempos modernos. (Nota da editora: Claro que não. Seria uma contradição para alguém que mantém um blog na internet, não é verdade?). Acho apenas que estamos concentrando funções demais em apenas um pequeno aparelho que é vulnerável a acidentes bizarros como mergulhos em vasos sanitários e quedas livres. Além disso, ando com o palpite de que a indústria de lentes e de armações de óculos se tornará particularmente próspera e atrativa nos próximos anos. Imagino que, em breve, os primeiros sinais de vista cansada passarão a aparecer aos vinte e poucos anos e não mais perto dos quarenta.

(Por Mauro Giorgi; editado no celular de Livia de Almeida).

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Perdido na areia: a hora do pesadelo

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