Personagem, interrompida

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Por Alma Mayfair*

Sei perfeitamente que eu não existo sem você. Não é drama, nem verso de canção de Elizeth Cardoso. Você me inventou numa tarde chuvosa, depois de ter tomado uma taça de vinho argentino. Ok, uma não, muitas. Acho que a bebida ajudou a fazer com que perdesse a inibição diante daquela página em branco. Dei muito trabalho: primeiro fui ruiva, com covinhas ao sorrir; depois loura e sedutora, quase uma femme fatale. Não foi só a cor do cabelo que mudou a cada delete na tela. Meu nome também. Foi uma ginástica até chegarmos a um consenso. Sim, porque nasci com personalidade forte. Esse foi o primeiro e definitivo atributo que você me conferiu, mesmo sem saber se eu era uma irlandesa a contemplar os precipícios de Dingle, uma expatriada brasileira vivendo em Londres ou uma executiva no Rio de Janeiro. Assim consegui me impor para ser exatamente como sou. Diante de sua obra, você sorriu.

Sempre soube que tinha grandes planos para mim e eu estava disposta a tudo, a encarar qualquer trama. Perder a memória e vagar por uma cidade estrangeira. Manter um tórrido caso com um desconhecido num clube de jazz. Arriscar-me como agente secreta que enfrenta uma organização mais secreta ainda. Viver amores trágicos – você adorava flertar com o drama, tropeçar na pieguice e carregar nas tintas. Nunca me importei. Tinha orgulho de ser a protagonista.

Foram tantos os momentos felizes – não acredito que tenha esquecido daquelas tardes preguiçosas que passávamos juntos. Você se divertia em me imprimir pequenos vícios, manias e hesitações. Ah, e eu, por minha vez, ouvia seus segredos, como seu excessivo apreço àquele vinho argentino barato e o gosto por demorados banhos de banheira. E até dava meus palpites em seu trabalho. Sim, porque como você logo descobriu, ganhei contornos próprios, independentes da sua criação. Expliquei que seria um absurdo me colocar ao volante de um automóvel porque nunca aprendi a dirigir, contei o quanto gostava de poesia e de viajar para lugares distantes. E você me deu presentes: a paixão pelo mar em dias de ressaca; um perfume meio doce, meio cítrico que se tornou uma marca-registrada; um fraco pelo tango. Falei de meus medos: trovões, cães brabos e palhaços. Você me falou dos seus: escuro, fantasmas, velhice solitária e bloqueios criativos. Fui paciente quando eles aconteceram, lembra? Agitado, olhava para mim e jurava: “Isso nunca me aconteceu antes.” Nunca te abandonei, nem quando tropeçava nos clichês.

Posso parecer egocêntrica – e não sou, afinal nunca fui uma narradora em primeira pessoa, isso sim, coisa para personagem que só olha para o próprio umbigo. Confiei cegamente na sua terceira pessoa onisciente, embora sabendo que sempre puxava a sardinha para a minha brasa. Meu ponto de vista prevalecia, seja franco. Cheguei a reclamar que deveria se dedicar mais a dar consistência aos meus parceiros. Vou dizer na sua cara: alguns eram bem rasos mesmo. Você se justificava dizendo que só queria me fazer sobressair, brilhar mais e mais. E dizia que eu não saía da sua cabeça o dia inteiro, manhã, tarde e noite. Nem na banheira. Principalmente na banheira. Desculpe, eu divago.

Não sei exatamente como as coisas desandaram entre nós. De repente suas ausências se alongaram. Falta de tempo. Preocupações. Afazeres. Depois o desânimo ficou evidente, comecei a dar voltas em círculos de parágrafos curtos e repetitivos. Fui para a frente e para trás até chegar a um beco sem saída. Percebi que a situação tinha ficado crítica e aguardei com a respiração suspensa. Tentei conversar, puxar assunto, entender o que passava pela sua cabeça, mas você me ignorou completamente. Esqueceu o Word e passou a cuidar exclusivamente de planilhas.

Eu estava disposta a suportar todos os enredos e desfechos que sua imaginação rabiscasse, mesmo voluntariosa como sou. Só não contava com essa decisão intempestiva de interromper a nossa história. Pior. Jogar nosso arquivo no lixo, destruir todo esse mundo fantástico que construiu para mim e me apagar. Sabe de uma coisa? Acho que o meu maior medo não é trovão, cachorro nem palhaço. O maior medo de qualquer personagem é ser deletado e tombar no limbo das palavras esquecidas. É assustador.

Por isso, não aperte a tecla Enter para jogar tudo na lixeira. Em nome de nossos bons momentos, não me sacrifique. Tenho certeza que podemos resolver a questão, desatar este nó, chegar ao clímax e criar uma experiência de leitura inesquecível. Sou versátil. Além do mais, eu existo. Em algum lugar, existo. Por favor, não tire de mim um final fel…

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*Alma Mayfair é protagonista de um romance interrompido.

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