Solidão interativa

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Por Mauro Giorgi

O fotógrafo americano Eric Pickersgill observou uma cena corriqueira e um tanto melancólica, durante um almoço em Nova York. Na outra mesa, encontrava-se uma família com quatro integrantes. O pai e os filhos estavam completamente absortos nas telas de seus celulares. Sem telefone a mão, talvez por opção, a mãe olhava a janela com um ar triste. A conversa era pouca. De vez em quando, o pai erguia os olhos e comentava alguma coisa bizarra que acabara de ver na internet. O fotógrafo ficou impressionado com a maneira com que as telas se transformaram em uma extensão do corpo humano e fez uma série de imagens com desconhecidos. Em todas as cenas, ele removeu o telefone. O resultado é estranho e, pensando bem, um tanto assustador. (Veja a série “Removed” nesta reportagem NO SITE BORED PANDA (COM TEXTO EM INGLÊS)/).

A comunicação instantânea via WhatsApp, SMS, Messenger e outros programas é uma maravilha, sem dúvida. A meu ver, deveria funcionar como mais um elo para unir as pessoas e não se tornar um jeito de ficar isolado daqueles que nos cercam, sorrindo para uma tela e não para quem está do lado. Para muitos, tornou o uso da voz algo secundário. Imagens, emojis e abreviaturas supostamente sintetizam o que se tem a dizer. Será? Até expressões de uso quase automático como “bom dia” e “obrigado” podem ganhar sutis variações de sentido e de intenção de acordo com a entonação, com a expressão. Imagine então um “eu te amo”? Ah, as confusões que podem nascer quando aquele que tecla de um lado pensa numa coisa e o que recebe a mensagem, do outro, imagina a entonação. Ouvir o outro anda meio em desuso. Dedicar toda a atenção para um ser tridimensional, então, ficou mais complexo ainda. Alguém teve a pachorra de contabilizar quantas vezes, em média, as pessoas costumam consultar os celulares por qualquer motivo. Houve quem fizesse o gesto 150 vezes por hora.

Talvez esse incômodo seja coisa de gente mais velha, que reconhece uma ficha de orelhão quando vê. Gente do tempo em que se varava a madrugada jogando conversa fora na mesa de bar, desenvolvendo teorias estapafúrdias, rindo, discutindo, praticando a chamada troca de ideias. Gente que conversava sério, olho no olho, quando necessário. Gente que fazia de tudo para se reencontrar fisicamente e trocar abraços. Sem essa de criar um grupo no WhatsApp onde todos participam de tudo e nada é aprofundado.

No filme “Ela”, Joaqin Phoenix se apaixona por um sistema operacional com a voz da Scarlet Johansson. Essa é uma das cenas românticas.

Chego a imaginar um cenário distópico, num futuro não tão distante em que a vida inteira se desenrola virtualmente em grandes grupos de WhatsApp, nos quais todas as comunicações acontecem. Já me vejo montando uma organização subversiva com outros rebeldes, promovendo encontros clandestinos para trocar abraços, carinhos, sorrisos e gargalhadas, falar de experiências vividas e quem sabe até mostrar fotos em papel (o que seria o máximo em matéria de vintage).

Agora, a revolução seria ainda mais audaciosa. Teria como objetivo devolver o verdadeiro significado das palavras, daquelas palavras mais desgastadas e surradas pelo uso cotidiano. Encontrar a verdadeira beleza que não cabe num simples “blz”, manifestar um sincero agradecimento que não cabe em “vlw”. Desejar um “bom dia” que seja realmente bom. E arriscar, quem  sabe um “eu te amo” acompanhado por olhares de carinho.

E você? Vai mesmo passar o resto do dia olhando para essa tela?

Foto da série “Removed”, de Eric Pickersgill.

 

 

 

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3 comentários

  • Fátima Souza ? disse:

    A solidão pode ser uma questão opcional. Você descarta tudo que não te interessa sem ter que dá explicação.

  • Fátima Souza ? disse:

    Foi por acaso que abrir este site. Agora o tédio e a solidão vão me deixar um pouco em paz. Texto envolvente, idéias organizadas e inteligente. Parabéns

  • Mariane Almeida disse:

    Não, não vou. Os verdadeiramente sós, ilhados, isolados, geralmente optam por esse “entretenimento”. Perfeitamente compreensível. Em grupo, em mesa de bar, em almoço de família, em cineminha em casa, é de fato lamentável.
    Bem oportuno e atual seu texto.

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